
Sinéad O’Connor no Cambridge Folk Festival 50th Anniversary, em 1 de Agosto de 2014. Foto © Bryan Ledgard, CC BY 2.0, via Wikimedia Commons
Algures a meio da primeira pilha de leituras de verão, livros sobre mulheres, maternidades, presenças e ausências, chegou a notícia que Sinéad O’Connor/Shuhada’ Sadaq morreu a 26 de julho de 2023, aos 56 anos. Desde então, tenho pensado nela todos os dias – leio uma entrevista, vejo um vídeo, penso e repenso. Há coisas que quero dizer sobre o assunto, mas tardam a organizar-se no texto. Faz-me falta articular esta sensação de que partiu uma “das nossas”.
Sinéad levava as coisas a sério, na sua relação com Deus, orientada por um inesgotável sentido de justiça. Foi tratada como incapaz, por possuir vários diagnósticos psiquiátricos, mas era incisiva ao apontar com lucidez e coragem aquilo que ninguém queria ver – denunciou os abusos sexuais de crianças acobertados pela Igreja e fê-lo a olhar um país inteiro nos olhos. Entretanto, passaram 30 anos.
É muito racional, para alguém que não fecha os olhos à injustiça, deslizar para a loucura. Mas da turbulência de lidar com o mundo, Sinéad regressava para criar mais um álbum e pôr o dedo na ferida.
Sinéad, cantora de protesto, dizia precisar de gritar aos microfones. Era libertador. A música era também a sua forma de exercer o sacerdócio a que se sentia chamada, por ela entendido como o serviço que presta um ser humano imperfeito ao ajudar um outro a sentir a presença de Deus.
Foi irlandesa, católica, muçulmana, antirracista, denunciadora de todo o tipo de opressões, vítima de inúmeras violências pela mãe durante a infância, mãe de quatro filhos, avó de duas crianças, casada e divorciada várias vezes, órfã de mãe aos 18 anos, em luta com esse luto toda a vida, ao que se somou o luto pela morte do filho de 17 anos, diagnosticada com doença bipolar, escritora de canções, dona de uma voz inconfundível.
Sinéad dizia que ser mãe foi a sua maior realização. Foi defensora do direito ao aborto, numa Irlanda piamente conservadora. Foi pressionada a abortar aquando da sua primeira gravidez (muito inconveniente para promoção do também primeiro disco) e recusou-se a fazê-lo.
Numa entrevista refere que, na infância, o Espírito Santo ter-lhe sido apresentado como um pássaro lhe parecera muito coerente. Durante a eucaristia, via que aquela ave era libertada e partilhada pela assembleia. No final, voltava a ser engaiolada num pequeno cofre.
O catolicismo que lhe vinha pela cultura e pela família abriu-lhe a possibilidade de Deus num mundo em convulsão e repleto de incoerências. Como é que alguém que devia amar magoava? Como é que sermos feitos à imagem e semelhança do Criador nos tornou em seres de culpa? Como é que uma voz tão cheia podia ter sido feita para estar quieta e calada?
Sinéad participou num concerto em Nova Iorque, em outubro de 1992, apenas alguns dias depois de ter rasgado a foto do Papa João Paulo II, em direto na televisão. Perante a rejeição do público, pediu aos músicos para parar de tocar e arrancou num solo à capela de War, de Bob Marley.
Torna-se numa força contida pelo casaco azul que lhe estrutura o tronco, toda composta de traços finos, tão capturável dentro da moldura da beleza, e o que sobressai é a forma como abre a boca. Quer dizer completamente cada palavra, calar os assobios com a coragem que a verdade das palavras reúne. Move o maxilar, articula o inadiável.
E já chega. Recolhe-se, deixa-se abraçar por um abençoado Kris Kristofferson, em quem hoje nos revemos. Um abraço muito necessário e merecido.
Sinéad não escondia a dor que trazia dentro e foi ensinando-se a aceitá-la.
Sobreviveu a muito.
Sara Leão é mediadora educativa e formadora de Português Língua Estrangeira.