
“A pobreza, os conflitos armados e, mais recentemente, a pandemia contribuem, de forma mais estrutural ou mais conjuntural, para o abandono da escola.” Foto © Rana Roy / Wikimedia Commons
Continuam a ser numerosas e diversificadas as situações de trabalho escravo de crianças no mundo e o problema não é apenas dos países mais pobres. A mensagem foi sublinhada esta quarta-feira numa videoconferência promovida pela CNASTI – Confederação Nacional de Ação sobre Trabalho Infantil, com apoio da representação em Lisboa da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
A iniciativa, realizada no âmbito do “Ano internacional para a eliminação do trabalho infantil”, contou com intervenções de ativistas dos direitos humanos, nomeadamente em meios infantojuvenis, da Guiné-Bissau e de Moçambique. Nos dois países foi apresentada a problemática da exploração sexual de meninas, que assume aspetos diversificados. Como salientou Adama Baldé, vice-presidente da Rede Nacional das Associações Juvenis, relativamente ao caso guineense, a exploração ocorre tanto nas ilhas de Bissau, com o turismo, como com empresas que chegam ao país para recrutar potenciais modelos e que são em alguns casos caminhos para captar “escravas sexuais”.
Já Moçambique, no dizer da ativista Benilde Nhalivilo, do ROSC – Forum da Sociedade Civil para os Direitos da Criança, do ponto de vista da exploração sexual de crianças é considerado um destino, um ponto de trânsito e de partida. A prostituição de meninas é mesmo tida como uma das áreas mais problemáticas da exploração do trabalho infantil.
O panorama da situação da infância moçambicana é revelador. Há no país mais de 15 milhões de crianças, correspondendo a 52% da população total. Um milhão, com idades entre os 7 e os 17 anos, encontram-se no mercado de trabalho. Uma em cada cinco crianças de idades entre os cinco e os 11 anos e uma em cada quatro de idades entre os 12 e os 17 anos, estão envolvidas em trabalho infantil.
A pobreza, os conflitos armados e, mais recentemente, a pandemia contribuem, de forma mais estrutural ou mais conjuntural, para o abandono da escola. No caso do distrito de Cabo Delgado, as incursões de grupos que espalharam o terror fizeram com que 30 mil crianças tenham ficado fora da escola, vagueando pelas ruas, muitas vezes sem saberem sequer dos seus pais.
O casamento “prematuro” e “combinado” pelas famílias é um problema, tanto na Guiné como em Moçambique, impedindo as meninas de ter uma palavra e de serem sujeito do seu destino. Segundo Adama Baldé, na Guiné-Bissau calcula-se que 47% das jovens entre os 15 e os 27 anos casem com homens substancialmente mais velhos. A consequência, frequentemente, é que elas se convertam em objeto sexual e em criadas do ponto de vista dos trabalhos ligados à casa. “Até quando o marido sai para trabalhar noutras paragens deixa, por vezes, a esposa como criada dos familiares dele”, observou a dirigente juvenil.
Uma outra situação que diz mais respeito aos rapazes guineenses e que chega a configurar tráfico de seres humanos é a prática de recrutamento para os levar para aprender o Alcorão em países vizinhos, como a Gâmbia ou a Guiné-Conacri. Têm surgido relatos em que vários desses miúdos se tornam, nesses países, pedintes de rua para alguns líderes muçulmanos, que chegam a castigar as crianças quando elas não lhes levam as quantidades previamente estipuladas.
Do ponto de vista das duas conferencistas, políticas para acautelar os direitos das crianças e evitar pelo menos as situações mais dramáticas de exploração ou mesmo de escravatura são débeis na Guiné-Bissau, existem formalmente na lei mas sem planos de aplicação e recursos adequados em Moçambique. Já em Cabo Verde, que estava representado na conferência da CNASTI por um inspetor de trabalho, a situação é substancialmente melhor, ainda que haja problemas.
Relativamente a Portugal, não há dados sobre situações de escravatura propriamente dita, entendida como quadros em que as crianças se veem indefesas e com a liberdade coartada, segundo Fátima Pinto, coordenadora da CNASTI, em declarações ao 7MARGENS.
Para ela, não há dúvida de que há situações dessas, ainda que escondidas. Até porque, faz notar, “Portugal é uma porta de entrada e de saída” para muita gente. E, refletindo sobre o país num quadro europeu, refere casamentos “obrigados”, em algumas comunidades; situações de extrema fragilidade económica que levam pais a vender os filhos; grupos organizados que roubam crianças; situações associadas à vinda de migrantes; redes que procuram assediar e cativar através da internet, etc. E admite, na esteira do que revelaram as conferencistas guineense e moçambicana, que possa haver meninas daqueles países que venham para Portugal estudar e acabem como serventuárias em casa de familiares. Até porque, como salientava Adama Baldé, a deficiente qualidade do ensino leva a que muitos jovens que vêm estudar para a Europa comecem a experimentar o insucesso e acabem noutro tipo de atividades, onde a dignidade do trabalho não é valor muito cultivado.
Fátima Pinto anunciou, entretanto, que a CNASTI organiza em 24 de novembro próximo uma outra conferência, desta vez sobre o tema “É possível o fim do trabalho infantil?”, cujo programa será em breve divulgado.