Novo livro de Tolentino Mendonça

Sobre a beleza do mundo sem nome

| 5 Dez 2021

Acaba de sair o último livro de poemas de José Tolentino Mendonça, Introdução à Pintura Rupestre (Assírio & Alvim, Outubro de 2021). Para um leitor habitual da poesia de Tolentino Mendonça, repete-se um pouco a experiência de reencontrar uma voz familiar, que no entanto o interpela a partir de um lugar tão singular, que o obriga a sair da sua zona de conforto; a voz lírica de Tolentino Mendonça não nos prepara para o próximo encontro, por muito viajados que sejamos na cartografia da sua escrita. Já foi assim com Teoria da Fronteira (Assírio & Alvim, Maio de 2017), um conjunto de poemas votado à reflexão sobre a radical experiência migrante, tão profundamente político quanto incontornavelmente espiritual; de resto, tem sido sempre assim, desde publicações anteriores.

Introdução à Pintura Rupestre pode descrever-se como a fixação da memória de uma infância. A fixação da memória é um árduo exercício de palavras, que não consegue sequer guardar o passado que, como uma aparição, nos pede para ser resgatado: “A memória é anterior aos alfabetos / exprime-se por riscos / práticas de deriva […]” («A primeira magia»); a infância é o lugar do corpo-em-movimento, a travessia do acontecimento sem nome, o que corresponde a dizermos que na infância todas as palavras valem para tudo nomear: “parecia-nos estranho que houvesse apenas uma palavra / para designar o mundo” («Manguezal»).

Este exercício de fixação de uma memória é disposto, metaforicamente, como uma escavação arqueológica, presente desde logo no título do livro – a “pintura rupestre” designa o tempo antes da escrita, do verbo, o tempo das imagens, e remete-nos para o que depois, a cada poema, nos é dado ver: o exercício de leitura e de construção de uma narrativa da infância a partir de sinais, objectos, imagens por vezes fulgurantes, sensações soltas. Mas o olhar que se vota a decifrar as imagens da “pintura rupestre” é o de um estranho, feito de determinação e vulnerabilidade, que analisa, comenta, ensaia uma explicação a cada verso, adensando o sentido enquanto tacteia e se entrega ao “jogo de esconde-esconde” («Dos objetos») com os vestígios, “a presença subsistente de um resto” («Dos objetos»), firmando uma voz de pendor reflexivo, igualmente indiciado no título do livro: Introdução à

E o livro vai-se folheando como uma reverberação sistemática do seu título, dispondo um lento e cuidado exercício arqueológico sobre a (própria) infância, dando a ver uma voz lírica que se mantém fiel ao ensaio de explicação e determinada no resgate de uma vivência primordial e fundacional, a partir dos seus vestígios – somos levados pelos poemas como por frágeis embarcações e a imagem belíssima que faz a capa deste livro, uma fotografia de Manuel Rosa, sugere isso mesmo.

Capa do livro de Walter Benjamim Imagens de pensamento

Não podemos deixar de convocar aqui a voz e o pensamento de Walter Benjamin a propósito da memória do vivido, pois é isto mesmo que vemos acontecer neste conjunto de poemas de Tolentino Mendonça: “Quem procura aproximar-se do seu próprio passado soterrado tem de se comportar como um homem que escava. Fundamental é que ele não receie regressar repetidas vezes à mesma matéria – espalhá-la, tal como se espalha terra, revolvê-la, tal como se revolve o solo. Porque essas ‘matérias’ mais não são do que estratos dos quais só a mais cuidadosa investigação consegue extrair aquelas coisas que justificam o esforço da escavação. Falo das imagens que, arrancadas a todos os seus contextos anteriores, estão agora expostas, como preciosidades, nos aposentos sóbrios da nossa visão posterior – como torsos na galeria do coleccionador.” («Imagens de pensamento: Escavar e recordar» [escrito entre 1924 e 1934], versão de João Barrento, in Imagens de pensamento, Assírio & Alvim, 2004, p.219; de novo, esta última imagem da galeria do coleccionador está curiosamente reflectida na fotografia que faz a capa deste livro).

Central nesta assumpção metafórica do trabalho arqueológico sobre o passado é o poema «Dos objetos», que constitui um momento auto-reflexivo do próprio ciclo, dispondo o método desta rememoração da infância; também em «A primeira magia» se procura entender a memória propriamente dita. Fazendo eco do título do livro, os nomes dos poemas inclinam-se para a disciplina analítica, buscando o contorno rigoroso e insistindo na explicação: dão um nome de um lugar ou paisagem, o nome de um conceito ou afecto, de um acontecimento histórico, ou simplesmente o nome de um objecto, aliados a formas de aproximação, como: “a história social de…”, “o conhecimento de…”, “inquérito a…”.

O que espanta em cada um dos 19 poemas e à medida que progredimos no ciclo, numa leitura obediente à ordem com que surgem alinhados, é a volumetria narrativa de que são capazes, onde, a partir de uma imagem fulgurante, se constrói toda uma história – e nos casos em que o poema surge de um acontecimento passado, o próprio texto dá-nos a explicação biográfica, para que o nosso olhar não se distraia com isso e se demore em outras camadas de sentido; outros casos há onde o poema é um generoso exercício de palavras, um quase jogo por tentativa e erro, que tenta definir com cada vez maior rigor um conceito, ou um objecto, ou um detalhe de uma cena. Cada poema é um testemunho, não só da memória de que brota, como do exercício de fixação da memória, qual relato arqueológico.

O poema (a voz lírica) expõe-se a si mesmo ao expor, quase em bruto, a matéria de que é feito, por via de um discurso que se afigura cristalino, na simplicidade e despojamento com que constrói o verso, marca a cesura, tenta dizer a coisa; sem ornamento. Com isto, implica, sem fazer qualquer cerimónia, o leitor, que se vê chamado a acompanhar este exercício indagador sobre a memória da infância. Nunca a voz lírica se dirige ao leitor, não é necessário: basta mostrar-se assim, desarmadamente, em cada um dos poemas, para traçar uma relação fraterna com o leitor, que então se vota a um mesmo exercício de decifração. É aqui que encontramos a volumetria narrativa potenciada pelo poema; por exemplo, o poema «Manguezal» pode ser lido como o recordar de um episódio da infância num contexto muito singular e único – as crianças totalmente entregues à sua alegria nos mangues do Lobito, em Angola – mas também como a definição da infância, e qualquer um se reconhece nessa infância ali descrita a rigor, sem ter passado pelos mangues do Lobito. É-nos dado vislumbrar o ‘paraíso’ da infância, onde somos “testemunhas de um segredo / que não [está] destinado ao olhar dos homens”, onde se detém uma verdade fundacional, “rupestre”, que na rememoração disposta por palavras é resgatada para que não fique esquecida, para que se redima de algum modo possível – a infância do Lobito é a infância de qualquer um.

 

Um manguezal: o poema que evoca esse ecossistema “pode ser lido como o recordar de um episódio da infância num contexto muito singular e único”. Foto © Heris Luiz Cordeiro Rocha

 

É esta a surpreendente oferenda que nos é feita com este livro. Esta forma de redenção, que se traduz na possibilidade que é dada ao leitor de imaginar (no sentido de refazer a imagem), faz de cada poema uma oportunidade grávida de múltiplos sentidos: “Os objetos não se relacionam com um domínio / confirmam sim uma fascinação / costurando no seu engendramento a dobra / um abismo para participar do inteligível / quando o singular cruza o universal […]” («Dos objectos»)

Mas a longa e densa ponderação sobre “pintura rupestre” neste livro não se esgota com a leitura dos poemas. A voz indagadora que conhecemos na sua roupagem lírica prossegue o seu rigoroso caminho no texto que fecha este ciclo de poemas – intitulado “A quem deixas o teu oiro” – e que é uma versão de um texto publicado em 2014 na revista Granta. Trata-se de uma evocação, pelo autor, da sua avó que viveu no Lobito, a avó analfabeta que, sabemos de outros testemunhos de Tolentino Mendonça, foi a primeira e inaugural biblioteca do poeta. É um texto que ocupa o lugar de um epílogo, e no entanto não é um epílogo; poderá enquadrar o ciclo de poemas que o antecede, poderá ajudar-nos a situar o lugar da primeira infância do poeta e a fortíssima presença desta avó, e no entanto aqui, como em cada um dos poemas, a voz enunciadora assume o seu lugar de estranheza, não dando tréguas ao exercício indagador, desta feita sobre a figura enigmática da mulher que o ensinou a ler sem o saber fazer, ela própria. É um texto que indaga sobre o silêncio desta mulher e que, ao dar testemunho do muito que fica por se saber, como que transforma este texto numa espécie de conversação com a avó, na forma desviada de uma carta póstuma.

Este vigésimo texto comporta-se como uma espécie de reflexo dos poemas que o antecedem, num exercício espinosiano de afecção intuitiva que clarifica muito – cada poema empresta a sua voz ao silêncio sabedor desta avó analfabeta, silêncio este que o adensa imensamente, numa troca de dons (como se os poemas já não fossem, por si só, suficientemente densos!). A voz lírica convém, no sentido espinosiano (“Todos os corpos convêm em algumas coisas”; Ética II, Prop.13, lema 2, na versão de Diogo Pires Aurélio, Relógio de Água, 2020), no silêncio enigmático desta avó, uma conveniência proporcional à que existe entre o silêncio “rupestre” da criança rememorada e a sabedoria oral desta avó, a sua “primeira e inesquecível informante” (p.56).

Com a leitura deste último livro de poemas de José Tolentino Mendonça estamos perante o testemunho de um “primordial amor” (p.56). Quem rememora o seu próprio passado como um estranho assume a postura de quem ama, à luz do que Giorgio Agamben nos diz em «Ideia do amor»: “Viver na intimidade de um ser estranho […] E depois […], dia após dia não ser mais que o lugar sempre aberto, a luz inesgotável na qual esse ser único, essa coisa, permanece para sempre exposto e murada” (versão de João Barrento, in Ideia da Prosa, Cotovia, 1999, p.51). Por todos estes aspectos de singularidade (e não os esgotamos todos aqui…), Introdução à Pintura Rupestre pode ser como que um itinerário espiritual, mais do que uma rememoração da infância.

 

Nota: O título deste texto é inspirado num verso do poema «A cesta».

 

Pedalar por amor, com o mundo dentro de nós

Dia das Ruas com Gente em vez de Dia Sem Carros

Pedalar por amor, com o mundo dentro de nós novidade

Chamam-lhe o Dia Europeu Sem Carros. Eu diria que lhe deveríamos chamar, ao 22 de Setembro, o Dia Europeu das Ruas com Gente. Não estamos a tirar nada, apenas vislumbramos, por umas horas, no canto dos pássaros desocultado pelo silenciar dos motores, no ar límpido, e na alegria das crianças e dos velhos que assomam à rua, como poderia ser a cidade se nos devolvessem o espaço que o uso indiscriminado do automóvel nos roubou. 

Apoie o 7MARGENS e desconte o seu donativo no IRS ou no IRC

Breves

 

Mil e duzentos milhões de pessoas vivem ainda na pobreza

ONU aquém das metas

Mil e duzentos milhões de pessoas vivem ainda na pobreza novidade

Eleva-se a 1,2 mil milhões o número de pessoas que ainda viviam na pobreza em 2022, e calcula-se em 680 milhões, ou seja, cerca de 8 por cento da população mundial, aquelas que ainda enfrentarão a fome até ao final da década. Isto apesar dos compromissos assumidos pela ONU, em 2015, de combater a pobreza e a fome no mundo, e apostar decididamente no desenvolvimento sustentável.

Campanha internacional quer homenagear 50 mil vítimas do Holocausto

Memorial a construir na Bielorrússia

Campanha internacional quer homenagear 50 mil vítimas do Holocausto novidade

Há mais de 80 anos, milhares de lápides que descansavam no grande cemitério judaico de Brest-Litovsk, na Bielorrússia (sabe-se que ali estariam enterrados cerca de 50 mil judeus), foram profanadas e usadas ​​para outros fins. Cerca de 1.200 lápides (ou o que sobrou delas) foram descobertas nos últimos 20 anos e agora uma instituição de caridade com sede no Reino Unido, a The Together Plan, decidiu devolvê-las ao seu local de origem, onde irá construir um memorial que homenageie esta comunidade brutalmente extinta.

Agenda

There are no upcoming events.

Fale connosco

Autores

 

Pin It on Pinterest

Share This