Acaba de sair o último livro de poemas de José Tolentino Mendonça, Introdução à Pintura Rupestre (Assírio & Alvim, Outubro de 2021). Para um leitor habitual da poesia de Tolentino Mendonça, repete-se um pouco a experiência de reencontrar uma voz familiar, que no entanto o interpela a partir de um lugar tão singular, que o obriga a sair da sua zona de conforto; a voz lírica de Tolentino Mendonça não nos prepara para o próximo encontro, por muito viajados que sejamos na cartografia da sua escrita. Já foi assim com Teoria da Fronteira (Assírio & Alvim, Maio de 2017), um conjunto de poemas votado à reflexão sobre a radical experiência migrante, tão profundamente político quanto incontornavelmente espiritual; de resto, tem sido sempre assim, desde publicações anteriores.
Introdução à Pintura Rupestre pode descrever-se como a fixação da memória de uma infância. A fixação da memória é um árduo exercício de palavras, que não consegue sequer guardar o passado que, como uma aparição, nos pede para ser resgatado: “A memória é anterior aos alfabetos / exprime-se por riscos / práticas de deriva […]” («A primeira magia»); a infância é o lugar do corpo-em-movimento, a travessia do acontecimento sem nome, o que corresponde a dizermos que na infância todas as palavras valem para tudo nomear: “parecia-nos estranho que houvesse apenas uma palavra / para designar o mundo” («Manguezal»).
Este exercício de fixação de uma memória é disposto, metaforicamente, como uma escavação arqueológica, presente desde logo no título do livro – a “pintura rupestre” designa o tempo antes da escrita, do verbo, o tempo das imagens, e remete-nos para o que depois, a cada poema, nos é dado ver: o exercício de leitura e de construção de uma narrativa da infância a partir de sinais, objectos, imagens por vezes fulgurantes, sensações soltas. Mas o olhar que se vota a decifrar as imagens da “pintura rupestre” é o de um estranho, feito de determinação e vulnerabilidade, que analisa, comenta, ensaia uma explicação a cada verso, adensando o sentido enquanto tacteia e se entrega ao “jogo de esconde-esconde” («Dos objetos») com os vestígios, “a presença subsistente de um resto” («Dos objetos»), firmando uma voz de pendor reflexivo, igualmente indiciado no título do livro: Introdução à…
E o livro vai-se folheando como uma reverberação sistemática do seu título, dispondo um lento e cuidado exercício arqueológico sobre a (própria) infância, dando a ver uma voz lírica que se mantém fiel ao ensaio de explicação e determinada no resgate de uma vivência primordial e fundacional, a partir dos seus vestígios – somos levados pelos poemas como por frágeis embarcações e a imagem belíssima que faz a capa deste livro, uma fotografia de Manuel Rosa, sugere isso mesmo.

Não podemos deixar de convocar aqui a voz e o pensamento de Walter Benjamin a propósito da memória do vivido, pois é isto mesmo que vemos acontecer neste conjunto de poemas de Tolentino Mendonça: “Quem procura aproximar-se do seu próprio passado soterrado tem de se comportar como um homem que escava. Fundamental é que ele não receie regressar repetidas vezes à mesma matéria – espalhá-la, tal como se espalha terra, revolvê-la, tal como se revolve o solo. Porque essas ‘matérias’ mais não são do que estratos dos quais só a mais cuidadosa investigação consegue extrair aquelas coisas que justificam o esforço da escavação. Falo das imagens que, arrancadas a todos os seus contextos anteriores, estão agora expostas, como preciosidades, nos aposentos sóbrios da nossa visão posterior – como torsos na galeria do coleccionador.” («Imagens de pensamento: Escavar e recordar» [escrito entre 1924 e 1934], versão de João Barrento, in Imagens de pensamento, Assírio & Alvim, 2004, p.219; de novo, esta última imagem da galeria do coleccionador está curiosamente reflectida na fotografia que faz a capa deste livro).
Central nesta assumpção metafórica do trabalho arqueológico sobre o passado é o poema «Dos objetos», que constitui um momento auto-reflexivo do próprio ciclo, dispondo o método desta rememoração da infância; também em «A primeira magia» se procura entender a memória propriamente dita. Fazendo eco do título do livro, os nomes dos poemas inclinam-se para a disciplina analítica, buscando o contorno rigoroso e insistindo na explicação: dão um nome de um lugar ou paisagem, o nome de um conceito ou afecto, de um acontecimento histórico, ou simplesmente o nome de um objecto, aliados a formas de aproximação, como: “a história social de…”, “o conhecimento de…”, “inquérito a…”.
O que espanta em cada um dos 19 poemas e à medida que progredimos no ciclo, numa leitura obediente à ordem com que surgem alinhados, é a volumetria narrativa de que são capazes, onde, a partir de uma imagem fulgurante, se constrói toda uma história – e nos casos em que o poema surge de um acontecimento passado, o próprio texto dá-nos a explicação biográfica, para que o nosso olhar não se distraia com isso e se demore em outras camadas de sentido; outros casos há onde o poema é um generoso exercício de palavras, um quase jogo por tentativa e erro, que tenta definir com cada vez maior rigor um conceito, ou um objecto, ou um detalhe de uma cena. Cada poema é um testemunho, não só da memória de que brota, como do exercício de fixação da memória, qual relato arqueológico.
O poema (a voz lírica) expõe-se a si mesmo ao expor, quase em bruto, a matéria de que é feito, por via de um discurso que se afigura cristalino, na simplicidade e despojamento com que constrói o verso, marca a cesura, tenta dizer a coisa; sem ornamento. Com isto, implica, sem fazer qualquer cerimónia, o leitor, que se vê chamado a acompanhar este exercício indagador sobre a memória da infância. Nunca a voz lírica se dirige ao leitor, não é necessário: basta mostrar-se assim, desarmadamente, em cada um dos poemas, para traçar uma relação fraterna com o leitor, que então se vota a um mesmo exercício de decifração. É aqui que encontramos a volumetria narrativa potenciada pelo poema; por exemplo, o poema «Manguezal» pode ser lido como o recordar de um episódio da infância num contexto muito singular e único – as crianças totalmente entregues à sua alegria nos mangues do Lobito, em Angola – mas também como a definição da infância, e qualquer um se reconhece nessa infância ali descrita a rigor, sem ter passado pelos mangues do Lobito. É-nos dado vislumbrar o ‘paraíso’ da infância, onde somos “testemunhas de um segredo / que não [está] destinado ao olhar dos homens”, onde se detém uma verdade fundacional, “rupestre”, que na rememoração disposta por palavras é resgatada para que não fique esquecida, para que se redima de algum modo possível – a infância do Lobito é a infância de qualquer um.

É esta a surpreendente oferenda que nos é feita com este livro. Esta forma de redenção, que se traduz na possibilidade que é dada ao leitor de imaginar (no sentido de refazer a imagem), faz de cada poema uma oportunidade grávida de múltiplos sentidos: “Os objetos não se relacionam com um domínio / confirmam sim uma fascinação / costurando no seu engendramento a dobra / um abismo para participar do inteligível / quando o singular cruza o universal […]” («Dos objectos»)
Mas a longa e densa ponderação sobre “pintura rupestre” neste livro não se esgota com a leitura dos poemas. A voz indagadora que conhecemos na sua roupagem lírica prossegue o seu rigoroso caminho no texto que fecha este ciclo de poemas – intitulado “A quem deixas o teu oiro” – e que é uma versão de um texto publicado em 2014 na revista Granta. Trata-se de uma evocação, pelo autor, da sua avó que viveu no Lobito, a avó analfabeta que, sabemos de outros testemunhos de Tolentino Mendonça, foi a primeira e inaugural biblioteca do poeta. É um texto que ocupa o lugar de um epílogo, e no entanto não é um epílogo; poderá enquadrar o ciclo de poemas que o antecede, poderá ajudar-nos a situar o lugar da primeira infância do poeta e a fortíssima presença desta avó, e no entanto aqui, como em cada um dos poemas, a voz enunciadora assume o seu lugar de estranheza, não dando tréguas ao exercício indagador, desta feita sobre a figura enigmática da mulher que o ensinou a ler sem o saber fazer, ela própria. É um texto que indaga sobre o silêncio desta mulher e que, ao dar testemunho do muito que fica por se saber, como que transforma este texto numa espécie de conversação com a avó, na forma desviada de uma carta póstuma.
Este vigésimo texto comporta-se como uma espécie de reflexo dos poemas que o antecedem, num exercício espinosiano de afecção intuitiva que clarifica muito – cada poema empresta a sua voz ao silêncio sabedor desta avó analfabeta, silêncio este que o adensa imensamente, numa troca de dons (como se os poemas já não fossem, por si só, suficientemente densos!). A voz lírica convém, no sentido espinosiano (“Todos os corpos convêm em algumas coisas”; Ética II, Prop.13, lema 2, na versão de Diogo Pires Aurélio, Relógio de Água, 2020), no silêncio enigmático desta avó, uma conveniência proporcional à que existe entre o silêncio “rupestre” da criança rememorada e a sabedoria oral desta avó, a sua “primeira e inesquecível informante” (p.56).
Com a leitura deste último livro de poemas de José Tolentino Mendonça estamos perante o testemunho de um “primordial amor” (p.56). Quem rememora o seu próprio passado como um estranho assume a postura de quem ama, à luz do que Giorgio Agamben nos diz em «Ideia do amor»: “Viver na intimidade de um ser estranho […] E depois […], dia após dia não ser mais que o lugar sempre aberto, a luz inesgotável na qual esse ser único, essa coisa, permanece para sempre exposto e murada” (versão de João Barrento, in Ideia da Prosa, Cotovia, 1999, p.51). Por todos estes aspectos de singularidade (e não os esgotamos todos aqui…), Introdução à Pintura Rupestre pode ser como que um itinerário espiritual, mais do que uma rememoração da infância.
Nota: O título deste texto é inspirado num verso do poema «A cesta».