
O que os 50 últimos anos nos revelam é que as sociedades abertas estão muito mais aptas a servirem as religiões do que os sistemas fechados. Foto © Shuterstock.
Há muito em comum entre todos os sistemas (políticos e religiosos) que se baseiam numa qualquer ideia de perfeição, julgando-se donos de toda a verdade e mandatados para a expansão, mesmo que seja à custa da vida dos outros. A invasão da Ucrânia pela Rússia dá-nos matéria de sobra para a análise do padrão do autoritarismo, que alia a visão unilateral do mundo à manutenção da sociedade fechada, justificando assim os massacres e todas as formas de opressão.
O princípio do desnorte das religiões na era moderna foram os sistemas defensivos que as levaram a enclausurar-se por medos vários, retirando-lhes o referencial externo das sociedades abertas que, mesmo em termos morais, evoluíram muito mais rapidamente do que elas próprias, tornando-as, em muitos aspetos, obsoletas e desajustadas.
Os últimos 50 anos assistiram a esse desfasamento de forma particularmente aguda, com os sistemas abertos a progredirem velozmente em áreas críticas como a transparência, a tolerância, a compaixão, a igualdade. Os sistemas religiosos, outrora arautos desses valores, ficaram para trás ou, pior do que isso, começaram a surgir nos holofotes como contraexemplos a evitar a todo o custo.
Uma das pechas dos sistemas fechados é a tendência à autocracia e ao totalitarismo, que procura dar respostas finais sobre todos os aspetos da vida humana, ficando esta sem escapatória alguma, ao serviço de uma ideia qualquer, que podem ser as 40 virgens do paraíso ou as glórias de um velho império.
O eixo de verdade (presente em todas as religiões e, como sabemos, em todos os totalitarismos) vai crescendo para uma espiral centrípeta, em que a única Verdade já não vai sozinha, mas acompanhada de tantas vestes que a dada altura nem se consegue vislumbrar o que é essencial. Daí à mentira é só um passo, porque todos os expedientes são considerados aptos para a salvação do próprio sistema.
Eis como chegámos às mentiras descaradas sobre esta guerra (mesmo perante a realidade mais evidente), muito em paralelo com os encobrimentos nos sistemas religiosos fechados, justificados pelo único fim de os “defender”.
Um outro traço dos sistemas fechados é o do convencimento de se possuir a chave para uma única leitura da realidade, bem como a certeza de que fora do sistema não pode haver bem nem virtude, ainda que debaixo dos olhos (e sob a sua batuta) sucumbam seres humanos.
O que os 50 últimos anos nos revelam é que as sociedades abertas estão muito mais aptas a servirem as religiões do que os sistemas fechados, porque curiosamente se baseiam em muitos valores inicialmente importados das religiões: a alteridade baseada na confiança em si mesmo, no outro (e em Deus), a transparência e a humildade de considerar que há sempre muito a melhorar, em nós mesmos e no mundo à nossa volta.
Ao encerrar-se numa ideia de bem não aferida em relação, os sistemas religiosos fechados cristalizam e não são capazes de dialogar de “corpo inteiro”. Cheios de desajustamentos em relação ao seu tempo (modos, linguagem e processos), revelam uma inexorável perda de ligação ao mundo que os rodeia e, sobretudo, uma incapacidade confrangedora em refletirem o Deus que pregam.
Encontramo-nos assim perante a distopia religiosa, ao mesmo tempo que os “pagãos” vão dando (felizmente) lições em tantas linhas, enquanto os sistemas religiosos fechados a custo tentam entrar no comboio em andamento.
O modelo de perfeição indicado por Jesus Cristo foi um samaritano, considerado impuro e indesejável. No entanto, por ter sido próximo e compassivo, foi dado como exemplo para os futuros cristãos ou apenas para os homens de boa vontade do agrado de Deus (Lucas 10, 25-37).
Porque já na altura, tanto como agora, os sistemas religiosos (fechados) revestiam-se de palavras vãs, vestes e ritos diferenciadores, isoladores da graça, encerrados numa ideia de perfeição refletida em mil “fardos pesados” que nada têm a ver com a glória de Deus e o bem do próximo.
A relevância das religiões, hoje em dia, passa também por esta conversão do coração que se verga perante o mundo não (formalmente) crente e aceita as suas contínuas lições de humanidade. Não só de humanidade, como também de fé, porque confia, de esperança, porque atua baseado nessa confiança, e de amor, porque se sacrifica pelo bem dos outros, imagem de Deus.
Dina Matos Ferreira é consultora e docente universitária, e coordenadora local da dinâmica sinodal na paróquia católica de São Francisco Xavier, em Lisboa; contacto: dina.matosferreira@gmail.com