Solsona, Espanha: a crónica de um desastre episcopal anunciado

“Desde que assumiu a mitra, [o bispo Xavier Novell] ‘julgava-se o único mestre e senhor, controlava absolutamente tudo e fez-nos sofrer muito à maioria dos padres’.” Foto: Direitos reservados, reproduzida do Religión Digital.
O abandono de um bispo do seu ministério pastoral é tão atípico que nem está prevista a sua secularização na lei fundamental da Igreja Católica, o Código de Direito Canónico. No cânone nº 290 §3, legisla-se sobre a perda do estado clerical dos diáconos, em casos graves, e dos presbíteros em casos gravíssimos – mas dos bispos nada se diz. Contudo, como se trata de uma questão disciplinar, o Papa pode sempre dispensar o bispo do celibato e permitir-lhe assumir novamente o estado laical.
Na semana passada foi notícia, também em Portugal, a história rocambolesca de um bispo em Espanha, Xavier Novell, que se apaixonou por Silvia Caballol, uma psicóloga com livros satânicos e eróticos publicados.
A sua renúncia foi tornada pública pelo Vaticano a 23 de agosto, tendo causado grande admiração em Espanha. Tratava-se do mais novo bispo de Espanha, com 52 anos, tendo assumido a diocese de Solsona com apenas 41 anos. Tem uma personalidade controversa, apoiou a independência da Catalunha e foi contra o acolhimento aos homossexuais e aos divorciados. Classificado como ultraconservador, e porque no início só foram apresentadas razões pessoais para o seu abandono, especulou-se que seria por não se sentir em sintonia com a dinâmica que o Papa Francisco está a imprimir na Igreja Católica.
Foi o Religión Digital que no final do mês passado revelou a razão do pedido de resignação de Novell: “Ter-se apaixonado e querer fazer bem as coisas”. Contudo o caso só ganhou dimensão mediática ao serem tornados públicos (também pelo Religión Digital), no dia 5 de setembro, os contornos dessa paixão.
Desde então tem-se procurado dar a conhecer quem é Xavier Novell e enquadrar melhor a sua surpreendente renúncia. Um desses contributos veio de Eduard Ribera, um padre de 85 anos, responsável de 20 paróquias na diocese de Solsona e província de Lérida, definido com um pároco de aldeia, daqueles de antigamente, “dos que conhecem a fundo a alma rural” e que, apesar da idade, não abandona as suas ovelhas.
Eduard Ribera revelou ao Religión Digital que vários presbíteros da diocese de Solsona procuraram travar a nomeação de Novell como bispo. Com esse objetivo escreveram ao núncio apostólico em Espanha, responsável por organizar os processos e nomear bispos, como acontece em todos os países. “Mas o bispo anterior, Jaume Traserra, e o cardeal Rouco [Varela, ex-arcebispo de Madrid] empenharam-se [na nomeação de Xavier Novell] e não conseguimos impedir a sua nomeação. Já sabíamos então que ele não servia para bispo, devido às suas constantes mudanças de 180 graus e ao seu modo de ser visionário.”
Desde então, confirmaram-se os receios de grande parte do clero de Solsona. O novo bispo, desde que assumiu a mitra, “julgava-se o único mestre e senhor, controlava absolutamente tudo e fez[-nos] sofrer muito à maioria dos padres, porque sempre teve 90% do clero contra ele e só contou com os restantes 10%, os padres mais jovens aos que deu os melhores cargos e posições”, contou Ribera.
A radicalização de Novell, segundo Eduard Ribera, acentuou-se com a eleição do Papa Francisco em março de 2013. “Para ele, a Igreja de Francisco é uma mãe que se tornou madrasta. Eu mesmo uma vez perguntei-lhe o que pensava do Papa e ele disse-me: ‘Ele fala muito sobre os pobres, mas eu farei o que me der na gana’.”
Xavier Novell revelou-se ainda mais visionário do que temiam, pois chegou a afirmar que “ia fazer em Solsona o que nunca foi feito na sua história, esquecendo-se que esta é uma diocese que tem cinco séculos de história e que por [ali] passaram bispos com tanto carisma e personalidade, como o cardeal Tarancón [arcebispo de Madrid durante a transição para a democracia], monsenhor [Antoni] Deig [bispo e poeta catalão] e tantos outros”.
É típico dos visionários fazerem tábua rasa de tudo quanto aconteceu antes deles e acharem que vão acordar o gigante adormecido, nem que seja uma pequena diocese como a de Solsona. Por regra, estes comportamentos revelam uma grande falta de maturidade.
Ao plano pastoral da diocese, com que ia fazer milagres e atrair muita gente à igreja, o bispo Novell chamou “a Visão”, que, segundo Ribera, consistiu apenas em acabar com os clássicos arciprestados e substituí-los por 12 unidades pastorais.
Quando lhe é perguntado o que fez o clero de Solsona perante o desnorte do bispo Novell, Ribera responde: “Fizemos o que podíamos. Vendo que se tornava cada vez mais um bispo instável, sem memória, e que, além disso, magoava pessoas específicas, começámos a escrever cartas a Roma. Eu mesmo enviei três – não me responderam a nenhuma delas.”
Em conclusão, os diocesanos de Solsona tiveram muita sorte em o seu bispo se ter apaixonado; caso contrário, corriam o risco de ter de suportar a sua instabilidade por muitos anos. É, aliás, o que acontece noutras dioceses, quando quem de direito não acolheu nem informações, nem alertas, nem sugestões, nem críticas – seja de leigos ou de clérigos – não intervindo para pôr fim a certos desmandos episcopais.
O caso Novell vem pôr em causa a forma como, em certos casos, são feitas as nomeações dos prelados. Nalguns casos, como alguém dizia, as nomeações são mesmo um pecado contra o Espírito Santo, uma vez que é a ele que se atribui a responsabilidade da escolha dos bispos. Parece ter sido o caso na novela de Novell: não se pode culpar o Espírito Santo por os alertas não terem chegado, a tempo e a horas, a quem tinha a responsabilidade de escolher o bispo de Solsona…
Fernando Calado Rodrigues é padre católico da diocese de Bragança-Miranda.