
Uma imagem do filme Som da Liberdade
Baseado em história real, o filme Som da Liberdade arrecadou mais de 180 milhões de dólares (cerca de 170 milhões de euros) nos cinemas dos Estados Unidos e tornou-se um fenômeno também no Brasil, ocupando o primeiro lugar entre os filmes mais assistidos pelo segundo fim de semana consecutivo. A produção norte-americana toca em um dos problemas mais sensíveis que enfrentamos enquanto sociedade: o tráfico e o abuso sexual infantil.
No Brasil, 73 mil crianças e adolescentes de zero a 17 anos foram vítimas de estupro entre 2019 e 2021, quase 14 mil no primeiro semestre de 2021– aumento de 6,9% comparado ao mesmo período de 2020. O aumento de casos durante a pandemia pode ser explicado pelo facto de mais de 70% da violência ocorrer dentro de casa. Segundo o Relatório Global sobre Tráfico de Pessoas das Nações Unidas, a proporção de crianças traficadas no mundo triplicou nos últimos 15 anos, e a covid-19 agravou a tendência geral de agravamento no tráfico de pessoas.
Mas como se pode combater a violência sexual quando ela é amplamente incentivada nas sociedades ocidentais? Existe uma correlação estatística entre consumo de conteúdos pornográficos e a violência sexual. Estudos revelam que filmes com conteúdo de pornografia perpetuam a subserviência feminina e normalizam a sexualização infantojuvenil; em mais de 50% dos casos, as mulheres são retratadas como assistentes, secretárias e donas de casa. “Além disso, a figura feminina aparece muitas vezes infantilizada, trajando uniformes escolares, meias, laços e presilhas, voz pueril e ausência de pêlo pubiano, reafirmando a figura de autoridade e poder do homem sobre “adolescentes”, ingênuas e frágeis”. Um estudo de 2010 analisou o conteúdo de 304 cenas de vídeos pornográficos mais populares e indicou que 88% das cenas apresentavam agressão física e 49% agressão verbal. Outro estudo apontou o aumento significativo da propensão para coerção sexual quando homens eram expostos a materiais pornográficos com ou sem conteúdo violento. Nesse sentido, os discursos e as representações imagéticas extrapolam as telas dos computadores e smartphones, e fazem das mulheres, crianças e adolescentes vítimas reais.
A pornografia é, na maioria das vezes, o principal referencial de iniciação sexual para os jovens e uma normativa entre os homens. No Brasil, entre as pessoas que assumem consumir o conteúdo, 76% são homens e 24% são mulheres. De todos os consumidores, 58% têm menos de 35 anos. Segundo dados de 2018, o Brasil ocupa a décima posição entre os países que mais consomem pornografia, enquanto os Estados Unidos lideram a lista. Curiosamente, esses países têm um forte apelo religioso e conservador. No caso de famílias em situação de vulnerabilidade social, crianças têm acesso a esse tipo de conteúdo cedo, pois convivem com adultos em espaços pequenos, resultando na violação da privacidade de ambos. Nesse contexto, os abusos sexuais são mais facilmente normalizados e, por isso, muitas pessoas somente entendem o que lhes aconteceu na infância ao se tornarem adultas; em casos como esses, embora os danos psicológicos não pudessem ser decifrados, sempre estiveram presentes, gerando vício em pornografia, comportamentos sexuais nocivos, ansiedade social grave e depressão.
O filme Som da Liberdade invoca, portanto, uma discussão fundamental, mas foi tristemente capturado por setores ultraconservadores, recebendo apoio do ex-Presidente dos Estados Unidos Donald Trump e sendo, por conseguinte, rechaçado por setores progressistas. O resultado é apenas um: a invisibilidade do grave problema que é a violência sexual infantil. Pessoalmente percebo que a violência sexual infantil não é um problema amplamente discutido e combatido pelos setores progressistas e esta é, portanto, a minha crítica. Neste texto, apontei a correlação entre o consumo de pornografia e a violência sexual, mas, como diz a psicóloga Lylla D’Abreu, “Apesar dos números robustos de consumo e produção de pornografia no Brasil, estudos científicos brasileiros sobre o consumo de pornografia e seus efeitos potenciais, no entanto, é visualmente nula”, e de pronto posso pensar em duas razões – entre tantas – para isso: 1) a pornografia move uma indústria milionária, o que torna essa discussão desinteressante; 2) vivemos um momento histórico de extremos, em que esse assunto só pode ser entendido ou sob a ótica da “moralidade” ou sob a ótica da “liberdade”. Com isso, mais uma vez, perpetuamos a violência e invisibilizamos traumas e sofrimentos reais.
Maria Angélica Martins é socióloga e mestra em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Brasil. Pesquisa a relação entre fenómeno religioso e política com ênfase para o protestantismo histórico e o neocalvinismo holandês.