
Ilustração representando Simão de Cirene a ajudar Jesus. Direitos reservados.
A lei da eutanásia voltou ao Parlamento português, e com ela um escândalo, um autêntico sobressalto social: a provocação ao princípio da inviolabilidade da vida humana, que nos interpela como sociedade e nos obrigará a tomar medidas concretas para evitar tragédias.
Sem esta lei, a defesa daquele princípio tem sido feita de maneira prática e barata: as pessoas estão “condenadas a viver”, queiram ou não queiram. Estão em situação de sofrimento insuportável? Paciência. Cada um tem de carregar a sua cruz, é assim desde o princípio dos séculos, é a vida.
Mas, uma vez aprovada a lei da eutanásia, a defesa da vida humana implicará o trabalho quotidiano e exigente de fazer com que as pessoas em situação de grande sofrimento queiram continuar vivas, apesar de terem a possibilidade de receber ajuda para antecipar a sua própria morte. Esta alternativa, sendo muito mais digna e humana, é muito menos prática e barata que a simples proibição da eutanásia. Implica muito empenhamento e muito esforço. Implica o envolvimento da rede familiar e social, exige o investimento do Estado nos apoios necessários a cada doente e nos cuidados paliativos, impõe um estado de alerta colectivo para sensibilizar as pessoas (sim, o famoso politicamente correcto também passa por aqui: pelo repúdio de expressões como “peste grisalha”, pela atenção aos termos em que se fazem as propostas de reduzir os “custos incomportáveis do SNS”).
Se pensarmos no risco do “plano inclinado”, a responsabilidade é ainda maior. Teremos de ser capazes de construir uma sociedade onde todas as pessoas se sintam bem-vindas e estimadas: desde logo, os velhos e as pessoas com graves problemas de saúde (que correm riscos sérios de se sentirem compelidos a pedir a eutanásia para não serem um “peso morto” na família e na sociedade), e também, entre outros, as pessoas com depressão profunda, ou as vítimas de bullying generalizado e quase inconsciente devido à sua orientação sexual ou identidade de género.
Traduzido em termos evangélicos: uma lei da eutanásia obriga-nos a tomar consciência da nossa responsabilidade como Simão de Cirene, da nossa obrigação de ajudar a carregar a cruz daqueles que o destino ou a insensibilidade social condenaram ao sofrimento. Numa sociedade que permita alijar a cruz, os defensores do princípio da inviolabilidade da vida humana terão de estar muito atentos aos que sofrem, dando-lhes a certeza de que nunca carregarão a sua cruz sozinhos, fazendo o que está ao seu alcance para reduzir o peso desta.
É fácil ir para a rua ou para os jornais protestar contra a aprovação desta lei. Muito mais difícil é ser Simão de Cirene todos os dias – a nível pessoal e a nível institucional. Mas é essa a prova dos nove que permite às pessoas e à sociedade no seu conjunto mostrarem que acreditam realmente no princípio da defesa da vida humana.
Helena Araújo vive em Berlim e é autora do blog Dois Dedos de Conversa, onde este texto foi inicialmente publicado.