
“Ao sermos ‘guardas’ dos nossos irmãos, Deus faz-se presente em nós.” Foto © Shutterstock
O pequeníssimo relato do primeiro homicídio da humanidade dado pelos livros sagrados é entre irmãos. Vale a pena ler com detalhe aquelas poucas linhas aos olhos de hoje, vendo que tudo começa porque aparentemente Deus olha com benignidade para a oferta de Abel, mas não olha com benignidade para a oferta de Caim (Génesis 4, 2-10).
Somos levados a questionar por que Deus não olhou com benignidade para a oferta de Caim. Afinal, foi desse desamor (assim entendido por Caim) que no seu coração começou a crescer o ciúme, a inveja, a raiva e a cegueira que o levaram a matar. Como pode Deus amar uns mais do que outros, ou mostrar esse amor mais a uns do que a outros? Ficamos perplexos, nós mesmos, com essa atitude de Deus, pondo-nos intimamente ao lado de Caim. A atitude de Caim é algo óbvia: por que hei de amar se não sou amado, por que hei de fazer bem se, fazendo o bem que faço, não sou aceite, de que me serve dar, se não sou acolhido?
Avançando um pouco mais na atitude de Caim, ela revela um nexo causal que nos parece evidente: se não sou amado, também não sou visto, não há um olhar sobre mim, Deus está longe de mim. Só esta atitude justifica a resposta de Caim, quando Deus lhe pergunta onde está o seu irmão: “Não sei.” Caim está certo que Deus o largou de vista e não quer saber dele. Caim está tão certo disso que não duvida em mentir a Deus.
Antes do homicídio, há ainda outro pequeno diálogo entre Caim e Deus que nos dá a chave para a leitura de toda a história. Percebendo o turbilhão de emoções em Caim, Deus diz-lhe: por que estás furioso? Não sabes que serás aceite se fizeres o bem, e que és chamado a dominar o pecado que te assalta? (Gen. 4, 6-7)
À luz destas palavras, percebemos que o dom de Deus, para Caim, era a possibilidade de ele ser santo, encontrar alegria no amor, encontrar felicidade no bem, independentemente das circunstâncias. O dom de Deus para Caim era, afinal, um coração à medida de Deus, bem maior do que o de Abel, o guardador de rebanhos.
Os dons maiores vêm muitas vezes mascarados. Para os cristãos, não se trata de uma máscara, é um sinal, e esse sinal é a Cruz. Como Caim, seremos tentados (sempre seremos tentados) a achar que Deus não nos vê, não quer saber de nós, não nos ouve e não nos ama. Se queremos acolher o dom de Deus, se queremos ser santos como Deus quer que sejamos, o que devemos evitar é fugir de Deus como Caim fugiu, mentir a Deus como Caim mentiu, matar o irmão como Caiu matou.
Não fugir de Deus é mostrar-lhe as nossas chagas, gritar-lhe com o nosso coração dorido, implorar-lhe o Seu consolo. Não mentir a Deus é revelar-lhe as nossas fragilidades, entregar-lhe as nossas dúvidas, medos e tentações. Não matar o irmão é não só alegrar-nos com as suas alegrias, mas também não passar ao lado, não ser indiferente, dar o tempo, a alma, a mão, o coração, mesmo que isso leve tudo de nós.
Ao sermos “guardas” dos nossos irmãos (mesmo que eles sejam desconhecidos) Deus faz-se presente em nós. Ao dar-nos a possibilidade de sermos guardas dos nossos irmãos, Deus concede-nos o dom maior, que é Ele mesmo. Ao invés, acharmos que não temos nada a ver com quem vai connosco na vida transforma-nos em carrascos, endurece o nosso coração, leva-nos para longe de nós mesmos e de Deus, faz-nos desperdiçar a possibilidade de amor que, ao final do dia e da vida, é tudo o que importa.
Dina Matos Ferreira é consultora e docente universitária. Contacto: dina.matosferreira@gmail.com