
Francisco celebrou missa de reconciliação no Santuário de Santa Ana de Beaupré, na sua visita ao Canadá: a capacidade de ser Igreja depende do bom uso da tecnologia ao dispor em cada nível de atuação. Foto © Vatican Media.
Estamos habituados a pensar a tecnologia apenas em termos mecânicos ou eletrónicos. Mas devemos entender a tecnologia como um conjunto de técnicas, instrumentos ou procedimentos usados para atingir um determinado efeito. Por exemplo, as técnicas ou a tecnologia educativa de uma escola elitista não pode ser a mesma que a de uma escola para todos.
Se olharmos bem, vemos facilmente que a tecnologia ou o conjunto de técnicas do exercício do poder no centro não podem ser as mesmas que as usadas por quem se encontra na periferia. No caso da Igreja Católica, conhecemos a imagem do papa transportado dum andor (o nome técnico é outro) aos ombros de uma série de homens. É claro que há o problema da visibilidade. Mas, curiosamente, a imagem do papa Francisco a tomar uma refeição na cantina com outros trabalhadores do Vaticano deu-lhe uma visibilidade notável. E se há problemas que o papa Francisco tem não é, sem dúvida, o de falta de visibilidade.
Governar ao centro é uma coisa; governar na periferia é outra. Ser igreja no centro e na periferia implica tecnologias diferentes. No centro, a comunicação é sobretudo vertical de cima para baixo e o estilo é imperativo. Governar na periferia implica uma comunicação de baixo para cima e depois uma regulação de cima para baixo e, além disso, uma série de processos horizontais entre participantes de uma caminhada comum.
Ora nós sabemos que a organização da Igreja Católica é de forte hierarquização e numa estrutura vertical de cima para baixo: centralizadora e clerical. Nem é necessário dar exemplos. Mas basta referir que é ainda uma monarquia absoluta e que na paróquia comum o padre é quase tudo, mesmo daquilo que percebe pouco.
Recentemente, foram-nos dadas imagens do processo sinodal em que é bem visível que o lugar de poder é ocupado por quem devia estar a escutar. Que escuta deve dar poder àquele que ocupa o lugar de fala. Mas se quem fala está num lugar físico e social de sujeição, que fala pode ser a sua?
Temos de olhar para as relações dentro da Igreja como sendo elas próprias significativas – porque o são – e geradoras de um certo resultado. E nós sabemos como as pessoas estão hoje habituadas a e desejosas de um certo tipo de relação. Por exemplo: até há bem pouco tempo, o cliente ia à mercearia e pedia um produto que o lojista ia buscar e lhe fornecia; hoje, a pessoa vai ao supermercado e escolhe, entre vários produtos, aquele que ela prefere. O mundo não é o mesmo. A tecnologia é outra, própria de um novo mundo. E não basta pensar que o nosso mundo é outro, porque estamos neste mundo.
É claro que a “verdade” de uma religião não pode ser decidida por votação. Mas nem tudo numa igreja é a sua “verdade”. Alguns aspetos têm a ver com contabilidade, com legalidade, com eficácia, com gestão da informação, com gestão financeira, etc. Ora os crentes estão, muitas vezes, bem habilitados nestes domínios, embora tendam a ser reduzidos a nada ou quase nada na vida eclesial. Não é difícil calcular com que resultados.
Recordemos, por exemplo, que a organização da Igreja Católica é muito centralizadora ou mesmo absolutista, enquanto as igrejas protestantes são muito mais democráticas no seu governo. Estamos, aqui, perante tecnologias opostas no que respeita à condução da vida da comunidade e da instituição.
Este não é só um problema da Igreja Católica: é uma questão vital para qualquer comunidade de crentes. Não se pode utilizar a mesma tecnologia de organização na cidade e na aldeia rural, na Europa e na África subsariana, com jovens e com idosos, com camadas populares e com elites culturais, e assim por diante.
Não há dúvida de que existe um problema nuclear que podemos dizer como o da mensagem religiosa ou da “verdade” específica de cada religião. Mas uma comunidade ou instituição religiosa não se reduz a essa “verdade” e à sua interpretação. Por outro lado, a “verdade” vivida não é independente da forma como a vida se estrutura entre os crentes dessa religião.
Muita da recusa da religião ou do indiferentismo que sabemos existir não tem tanto a ver com a “verdade” religiosa ou com a crença em causa, mas com determinada tecnologia social que se tornou insuportável. Embora também muita da adesão a uma certa prática religiosa tenha mais a ver com a tecnologia em uso, mais inovadora ou mais conservadora, do que com o que era suposto ser essencial. Mas não há uma religiosidade independente da forma como ela é vivida e como são governadas as relações entre os crentes. Por isso mesmo, certos crentes só são religiosos com certos padres, pastores e outros líderes religiosos.
Para sair do centro para a periferia, não basta uma conversão espiritual, é necessária uma revolução tecnológica, que não é digital. Porque quem usar na periferia as técnicas do centro pode acabar eletrocutado, perdão, sociocutado.
Voltemos ao atrás: quem foi educado numa tecnologia do centro não está preparado para usar a tecnologia da periferia. O mais provável é que, se tiver boa vontade ou a isso for obrigado, vá à periferia com modos de ser, de estar e de relacionar-se próprios do centro. Sem que disso tenha verdadeira consciência e responsabilidade. E o mesmo quanto às expectativas dos crentes. O problema é muito mais complexo do que habitualmente conseguimos ver.
P.S. – Este problema, é claro, não diz respeito apenas à Igreja Católica.
José Alves Jana é doutorado em filosofia, professor aposentado, voluntário e dirigente associativo. Contacto: jalvesjana@gmail.com