Livro sobre Drummond de Andrade

Teologia e Poesia

| 5 Abr 2022

Estátua de Carlos Drummon de Andrade, em Copacabana, no Rio de Janeiro (Brasil). Foto © Okitron, CC BY-SA 3.0 <https://creativecommons.org/licenses/by-sa/3.0>, via Wikimedia Commons

Estátua de Carlos Drummond de Andrade, em Copacabana, no Rio de Janeiro (Brasil). Foto © Okitron, CC BY-SA 3.0, via Wikimedia Commons.

 

O livro de Alex Villas Boas Teologia e Poesia em Carlos Drummond de Andrade. Busca de sentido e razão de recusa de Deus (Lisboa, 2021) que aqui se apresenta vem na continuidade dos volumes anteriores da coleção Estudos de Religião da INCM, nomeadamente o volume sobre a teologia ficcional de José Saramago. 

Os temas do presente volume são quatro: (1) uma crítica da linguagem teológica e de um modelo eurocêntrico, (2) as propostas “poéticas” de Carlos Drummond de Andrade neste contexto, (3) uma contemporaneidade caracterizada por experiências interculturais e (4) a consequente resignificação do acreditável. 

São também quatro os passos em que estes temas são abordados. Um primeiro capítulo debruça-se sobre a espiritualidade não religiosa, um segundo discute questões metodológicas no diálogo entre teologia e literatura, um terceiro é dedicado a Carlos Drummond de Andrade e numa última secção sugerem-se caminhos para recuperar a lógica poética da revelação. 

A leitura que aqui se propõe está baseada na experiência de quem estudou (e estuda) literatura e poesia e que – já por isso – pode estar na iminência de ser acusado de procurar o caminho mais curto e direto de Kafka para o sentido pessoal da vida. Nunca achei que este caminho seria curto nem direto e – ao fim ao cabo – talvez nem sequer acreditasse que seria possível encontrá-lo. Mas nunca tive dúvidas que “a procura de sentido” é o ofício da literatura – de quem a escreve, de quem a lê e de quem a analisa. E que esta procura frequentemente, e talvez necessariamente, toca numa dimensão religiosa. 

Para reforçar a dimensão intercultural que o livro destaca, é possível afirmar que a língua que falamos faz parte destes ‘toques’, destas proximidades e recusas. A palavra alemã Geist é um dos testemunhos disto: Geist é o Heilige Geist, o Espírito Santo, é o Weltgeist de Hegel, e o Geist nas chamadas Geisteswissenschaften (as ciências do espírito) que outras línguas chamam Humanidades. E é o mesmo Espírito de que falava o poeta alemão Gottfried Benn, sendo este espírito o objeto da sua dedicação, do seu serviço, que caracterizou como Gegenglück o oposto da felicidade. 

É também este espírito que encontramos nas “espiritualidades não religiosas” – se bem que a língua alemã não use aqui a palavra Geist, mas Spiritualität, um empréstimo do latim. Alex Villas Boas discute quatro teorias de uma espiritualidade não religiosa, de autores como Marià Corbí, Robert Solomon (Espiritualidade naturalizada) e André Comte-Sponville. O exemplo que, talvez, mais concretamente, representa os desafios destas questões no século XX e XXI é o de Viktor Frankl: como sobrevivente de quatro campos de concentração (incluindo Auschwitz), fundador da Logoterapia e autor de Man’s Search for Ultimate Meaning. 

Viktor Frankl representa o que para mim continua a ser a questão mais profunda que a experiência histórica nos colocou: não é Auschwitz a última recusa de qualquer sentido? Viktor Frankl enalteceu a importância da busca do sentido, como esta busca é ela própria um motor de vida e de sobrevivência. Num postscriptum do seu livro de 1984, Frankl introduziu a noção de um Tragic Optimism (um otimismo trágico), onde otimismo quer dizer procurando o ótimo, o melhor – tendo em consideração as três dimensões trágicas da condição humana: a dor, a culpa e a morte. E no século XX e XXI, estas dimensões incluem duas alertas com as quais Viktor Frankl termina o seu livro: Since Auschwitz we know what man is capable of. – And since Hiroshima we know what is at stake. Os seus leitores e seguidores querem acreditar que é exatamente esta situação trágica que mantem o sentido vivo – apesar de tudo.

É neste sentido que Alex Villas Boas continua a sua abordagem da natureza poética da espiritualidade – dando atenção especial a Jean Paul Sartre e ao seu ensaio “O que é Literatura”, abordando a relação do poeta com o místico, expressa nesta frase tão significativa do filósofo francês: “Os poetas não falam, nem se calam: trata-se de outra coisa.” 

Este primeiro capítulo conclui assim e muito justamente: “Espiritualidade e poesia são convergentes, sendo religiosas ou não, por ser a leitura desta última um ato de fé no humano.” 

Como mencionado, o segundo capítulo aborda questões metodológicas no diálogo entre teologia e literatura com um enfoque na teologia e literatura no Brasil, e começando com as obras de Antonio Manzatto que contribuiu com um prefácio para este volume. A metodologia proposta “não parte de premissas filosóficas que predeterminam suas respostas, aprisionando Deus dentro de uma metafísica que o torna ‘absoluto demais’ e tão distanciado da sua ação na história, mas parte da antropologia literária, ou seja, da liberdade narrativa para expressar a condição humana que não raro é crítica de modelos eclesiológicos”.

O terceiro capítulo é dedicado a Carlos Drummond de Andrade, à sua obra e à sua trajetória. O capítulo é repleto de informações, observações, provas e análises da extraordinária maneira como poesia e a busca de Deus se encontram na obra de Carlos Drummond de Andrade, um capítulo muito rico e de grande interesse. A título de exemplo citam-se aqui dois poemas do autor:

Único

O único assunto é Deus
o único problema é Deus
o único enigma é Deus
o único possível é Deus
o único impossível é Deus
o único absurdo é Deus
o único culpado é Deus
e o resto é alucinação. 

O que está aqui em jogo é a procura de Deus mais um pouco para o lado e para além das alucinações. Drummond é um bom exemplo para esta relação polémica entre teologia e poesia.

Sobre a contemporaneidade e o tempo escreve o poeta:

Congresso Internacional do Medo

Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio, porque este não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte.
Depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.

A poesia de Carlos Drummond de Andrade é, por isso, uma fonte inesgotável para a exploração literária de um sentido de vida e da procura de Deus. 

No seguimento deste pensamento, no último capítulo questiona-se como recuperar a lógica poética da Revelação, onde, mais uma vez, Viktor Frankl tem destaque com o conceito do homo patiens. Outros conceitos relevantes evocados neste contexto são a Teoestética de Hans Urs von Balthasar ou as Teologias do pathos. 

As conclusões de Alex Villas Boas são claras e instrutivas. Diz o autor: “A espiritualidade transformada em produto de consumo visa tão somente satisfazer a necessidade de conforto da clientela, ainda que seja um mero paliativo no que diz respeito às questões existenciais, culturais e sociais mais profundas.”

E ainda: “Não se trata de combater a diferença, no caso de Drummond, de seu ateísmo, mas de escutá-la e, especialmente as razões éticas de recusa. A apreensão das razões de recusa do religioso pode ser um rico caminho de construção do imaginário religioso, ao se dispor empaticamente a um exercício de autocrítica.” 

Conclui, por isso, Alex Villas Boas, “a poesia pode reconciliar-se com a teologia, quando o sonho de ambas é o de acolher a insistência para com a humanização da humanidade”.

Neste sentido, cabem as últimas palavras ao poeta Drummond com a sua

Receita de Ano Novo 

Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.
Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.

 

Peter Hanenberg é vice-reitor da UCP para a Investigação e Inovação e professor de Estudos de Cultura.

 

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