Terá a comunidade LGBT lugar na Igreja Católica?

| 7 Jan 2023

O padre James Martin, SJ, em audiência com o Papa, em 2019. Foto reproduzida da página de James Martin na rede Facebook

O padre James Martin, SJ, em audiência com o Papa, em 2019. Foto reproduzida da página de Martin na rede Facebook.

 

A recente leitura do estimulante livro de James Martin, Construindo uma Ponte, aumentou em mim a convicção de que há muito caminho a fazer no contexto da Igreja Católica quanto aos direitos das pessoas LGBT, tal como também em relação aos direitos das mulheres. Apreciei sobretudo a forma calma e ponderada (a meu ver um pouco cautelosa demais) como o autor vai pondo o dedo na ferida. Na sua perspetiva, se queremos que as instituições e as pessoas oiçam o que temos para dizer a respeito de temas polémicos, não é de todo eficaz zangarmo-nos com elas e recorrermos a métodos e linguagens conflituosos. Não só nada obteremos quanto aos objetivos que nos propúnhamos alcançar como desenvolveremos nelas anticorpos que hão de obstar ao diálogo pretendido. Muito dificilmente seremos ouvidos e raramente atendidos se usarmos as armas da ira.

Mas afirmar esta condição necessária para o desenvolvimento de um diálogo profícuo não significa eliminarmos o direito à indignação. É, de facto, muito difícil não nos indignarmos quando se trata de vermos excluídas pessoas cujo único “pecado” é serem portadoras de determinadas características afetivas em relação às quais não têm qualquer responsabilidade, sendo que tais características e o comportamento que lhes está associado não prejudicam objetivamente os outros. Neste sentido, não serão a exclusão ou a discriminação, baseadas na orientação sexual, na identidade de género ou no sexo a que se pertence, inaceitáveis injustiças? Por outro lado, se queremos efetivamente influenciar a instituição e alterar o seu modo de agir, bem como a doutrina que lhe está na base, não vale a pena investir furiosamente quebrando todos os canais de comunicação e provocando o extremar de posições que nunca terão grandes efeitos na alteração das circunstâncias em causa. Assim, o livro de James Martin revela-se um autêntico manual do diálogo e do encontro entre pessoas com posições opostas, ao mesmo tempo que tece considerações relevantíssimas conducentes à resolução dos atuais problemas que afetam a relação da comunidade LGBT com a instituição eclesial.

No entanto, creio que o problema da inclusão total dos católicos LGBT nas comunidades eclesiais só acontecerá quando se proceder a uma alteração significativa não só do comportamento da instituição como também da doutrina de que o Catecismo oficial é fiel depositário, a qual constitui realmente o substrato ideológico da atitude de discriminação e exclusão que se tem verificado ao longo dos séculos.

A linguagem usada pelo Catecismo é, deste ponto de vista, devastadora: “(…) os atos de homossexualidade são intrinsecamente desordenados. São contrários à lei natural, fecham o ato sexual ao dom da vida, não procedem duma verdadeira complementaridade afetiva sexual” (2357); a tendência homossexual é “objetivamente desordenada” (2358). Tais afirmações são interpretadas por muitos católicos — membros ou não da comunidade LGBT — como insultuosas e carecem de justificação racional.

É cada vez mais consensual que as tendências afetivas mais profundas nascem com as pessoas, sem que elas tenham tido qualquer responsabilidade pela sua aparição. Consequentemente, ou se aceita a diversidade de tendências sexuais que a natureza inscreve no quotidiano humano ou se rejeitam algumas dessas tendências por serem assimiladas a “deficiências” que urge corrigir. Esta última posição era (e é) amplamente posta em prática pelas sociedades e instituições tradicionais. Mas, atendendo aos estudos efetuados nestas matérias, a Organização Mundial da Saúde retirou, em 1990, a homossexualidade da sua lista oficial de doenças e perturbações. Não se trata, portanto, de nenhuma “deficiência” a corrigir ou, como afirma imprudentemente o Catecismo, uma tendência “objetivamente desordenada”. As pessoas podem conviver com tal tendência de forma saudável e serem afetivamente felizes enquanto partilham a sua vida com pessoas do mesmo sexo.

Dir-me-ão que o ponto de vista da Igreja é moral e não clínico. Decerto que sim, mas o que significa, então, do ponto de vista estritamente moral, que uma tendência é “objetivamente desordenada”?

O Catecismo explica que “[a sexualidade] diz respeito particularmente à afetividade, à capacidade de amar e de procriar, e, de um modo mais geral, à aptidão para criar laços de comunhão com outrem” (2322). As finalidades das relações afetivas íntimas são, portanto, do ponto de vista da Igreja, duas: a expressão do amor e da comunhão e a procriação.

Ninguém pode negar que a sexualidade humana existe com vista à propagação e manutenção da espécie. Mas a relação sexual não visa apenas a propagação da espécie. Visa também consolidar os laços afetivos, como o próprio Catecismo reconhece. Portanto, a doutrina oficial terá de justificar a razão pela qual considera que todo o ato sexual tem de estar sempre orientado para as duas finalidades em simultâneo. A própria realidade desmente esta perspetiva tão restritiva da sexualidade humana. As pessoas relacionam-se sexualmente muito para além de pretenderem ter filhos. A maior parte das relações sexuais que estabelecem não tem claramente esse objetivo e, muitas vezes, as pessoas tomam mesmo precauções para poderem ter relações sexuais sem incorrerem no risco de uma gravidez não desejada. Fazem-no exatamente por razões de natureza moral, revelando responsabilidade quanto aos filhos que podem sustentar. A reprodução não é nem pode ser um objetivo imprescindível da relação afetiva-sexual.

O principal motivo pelo qual as pessoas decidem partilhar a vida com alguém é a necessidade de companhia íntima. Somos seres sociais. A maior parte dos seres humanos não se contenta com relações sociais de caráter mais superficial e contingente. Muitos precisam de partilhar a vida íntima com alguém com quem possam contar nas suas dificuldades e preocupações, bem como nas suas alegrias e êxitos. Somos seres gregários. Não há como fugir a esta realidade. E com quem nos haveríamos de relacionar intimamente senão com alguém por quem sentimos afinidade afetiva? Não defende o cristianismo que o amor é o princípio central da ação humana? Se para a grande maioria a relação heterossexual assume perfeitamente esta função, para alguns seria uma condenação insuportável. O que resta a essas pessoas senão a possibilidade de encontrarem em alguém do mesmo sexo por quem sintam amor a resposta a esse apelo interior tão universalmente distribuído? A censura de tal opção redunda na condenação dessas pessoas a uma infelicidade permanente cujos efeitos na vida pessoal podem ser arrasadores.

Construindo Uma Ponte, de James Martin

Construindo Uma Ponte, de James Martin

Em suma: a ideia de que todas as relações sexuais têm de estar orientadas para a reprodução não colhe o elemento específico da relação afetiva humana, uma vez que um dos principais objetivos da relação sexual é fomentar e estreitar os laços interpessoais. A intimidade sexual gera relações mais consolidadas, conexões emocionais mais profundas e partilha de vida mais robusta. E claro que o aprofundamento da relação interpessoal conduz também a um sentimento de maior bem-estar e felicidade pessoal. E não foi para sermos felizes que Deus nos pôs no mundo?

Dizer que as relações sexuais que, pela sua própria natureza, não estão abertas à reprodução são moralmente reprováveis não faz, portanto, o menor sentido. A ser assim, alguém infértil estaria automaticamente proibido de manter com o seu parceiro relações de intimidade sexual. O corolário seria que a infertilidade seria impeditiva do casamento e que, se alguém soubesse ser infértil só após o casamento, teria de se separar ou de viver em total abstinência sexual com o parceiro. Obviamente que, se ninguém aceita tal situação em relação a pessoas heterossexuais, não se vê por que razão os homossexuais estariam impedidos de estabelecer relações íntimas estáveis.

Outro argumento a que recorre o Catecismo é o da complementaridade (2357) entre os dois sexos. Uma relação homossexual seria a negação da complementaridade entre sexos inerente à condição humana. Muito se tem discutido sobre a pertinência do conceito de complementaridade. As teologias feministas tendem a rejeitá-lo por estar relacionado com uma visão essencialista da natureza de ambos os sexos, a qual tem sido fundamento teórico para a afirmação de privilégios masculinos numa sociedade eminentemente patriarcal. Na verdade, grande parte do que entendemos por feminino ou masculino é construído social e culturalmente. Somos o fruto de uma visão teórico-prática que nos vai moldando desde tenra idade de modo a inserir-nos no padrão cultural em que uma dada sociedade está fundada. E sabemos como esse padrão tem gerado discriminação da mulher e exclusão de tudo o que, de uma forma ou de outra, não se enquadra nos seus parâmetros. Séculos de exclusão em relação àqueles que não se identificam com o paradigma dominante revelam o quão distorcida é a visão essencialista baseada numa “ordem natural” que os detentores do poder elaboram e interpretam a seu bel-prazer, de forma totalmente discricionária.

A verdade é que as diferenças são detetáveis não tanto do ponto de vista do género, mas no âmbito individual, muito para lá das evidentes diferenças anatómicas entre os dois sexos. E é na diferença individual, reconhecida e aceite, que nos enriquecemos mutuamente (ou complementamos, se desejarmos usar este termo) quando estabelecemos relações a vários níveis, incluindo também o nível afetivo-sexual. Deste ponto de vista, a redução das relações afetivas ao âmbito exclusivamente heterossexual revela-se destituída de sentido.

Jorge Paulo é católico e professor do ensino básico e secundário.

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