O que Alice (nome fictício) gostaria era que os bispos católicos promovessem, a partir de agora, “ambientes seguros e de ajuda” para as vítimas de abuso sexual por parte de membros do clero, com uma estrutura destinada a acolher novas eventuais denúncias e capaz de dar “apoio psicológico, perguntando a cada vítima o que precisa e o que pode ser feito: não precisamos que nos julguem, precisamos de apoio”.
Alice é, ela própria, um dos mais de 400 casos que aparecerá no relatório da Comissão Independente (CI) para o Estudo de Abusos Sexuais contra Crianças na Igreja Católica, que na manhã desta segunda-feira será tornado público numa conferência na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, depois de ontem ter sido entregue à presidência da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP).
Vítima de abuso por parte de um padre, Alice decidiu dar o seu testemunho à CI depois de ter estado largos meses à espera de ser contactada pela comissão diocesana à qual tinha apresentado queixa. Mas não ficou por aí: há pouco tempo criou um site “dedicado a vítimas de abuso na Igreja”, o Coração Silenciado.
“Estou muito curiosa sobre o que a CEP vai fazer efectivamente e sobre o que, dentro da CEP, cada bispo vai fazer”, diz Alice ao 7MARGENS, antes da divulgação pública do relatório. Nesta segunda-feira, eela estará atenta aos resultados e conclusões do trabalho da CI, mas sobretudo quer ver que sugestões serão feitas pela comissão à CEP. E guardará uma expectativa maior para Março, quando a Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) reunir em assembleia extraordinária para decidir o que fará na sequência do documento que neste domingo foi entregue pela CI.
“Não estou muito interessada no número, mas nas sugestões que a comissão vai fazer à Conferência Episcopal”, diz. E o que os bispos deviam fazer era dar, agora prioridade às vítimas: desde logo, no acolhimento das pessoas e das suas histórias: “Temos de levar as pessoas a perceber se há um ambiente para denunciarem casos de abuso, se isso for necessário, e a sentirem-se acolhidas de modo a poder partilhar a sua história e mesmo a serem ajudadas nos processos e no acompanhamento jurídico.”
“Fazer algo nesse âmbito é o que é importante”, diz, olhando para o seu próprio caso, depois de se ter sentido “completamente sozinha” na forma como se relacionou com a hierarquia católica. Integrada numa congregação religiosa, Alice foi abusada numas jornadas de estudo, durante a confissão. Alguns anos depois do facto, decidiu deixar a congregação, por não conseguir aguentar sozinha o peso da história que vivera. “Estar na congregação era uma opção pessoal, mas ninguém soube da verdadeira razão da saída.” Disse apenas que queria pensar melhor antes dos votos perpétuos, conta Alice, que pela primeira vez expusera parte da sua história há dias, numa reportagem da RTP.
“Não nos podemos dar ao luxo de confiar”

“Alice” numa imagem da reportagem da RTP.
Há uns três anos, Alice denunciou ao bispo o padre que a violentara. Aquele reagiu, dizendo que se ela dissesse o nome do padre, este poderia colocar-lhe “um processo por difamação”. Por isso, resolveu não dizer o nome. “Só uma pessoa nessa altura sabia do caso e foi ela que me desafiou a denunciar” mas, em vez de ter uma atitude de acolhimento do bispo, ele não acreditou e a conversa ficou por ali. O bispo em causa é titular de uma das 21 dioceses católicas portuguesas, diz.
Quando a diocese criou uma comissão de protecção de menores, dedicada a recolher queixas de vítimas de abuso sexual, Alice sentiu, de novo, um “tratamento muito esquisito: apresentei a queixa por escrito, em mão, mas demoraram mais de nove meses a contactar-me. Finalmente chamaram-me, fizeram-me um interrogatório, esperei mais uns meses até instaurarem o processo, que finalmente foi enviado para o actual Dicastério para a Doutrina da Fé (DDF), do Vaticano. A resposta já chegou, mas Alice ainda não conhece os termos exactos da decisão.
Foi, no entanto, perante o arrastar do processo da comissão diocesana que Alice decidiu contar o seu testemunho à Comissão Independente. “Preenchi o formulário da denúncia, apresentei os meus dados, ligaram-me da comissão e encontrei-me com dois dos seus membros.”
Apesar dos anos que passaram sobre o seu caso, Alice sente ainda “medo e desconfiança”: estava num ambiente que lhe merecia confiança, onde nunca imaginaria que alguém pudesse fazer o que ela sofreu. “Uma pessoa que nos merece confiança mas abusa de nós, fazendo algo que nunca deveria fazer, faz com que passemos a desconfiar de toda a gente”, admite.
“Há um antes e um depois do abuso” e Alice nunca mais sentiu a mesma capacidade que tinha para “criar laços de relação”. E desabafa: “Não nos podemos dar ao luxo de confiar porque não sabemos quem nos vai voltar a magoar. É muito complicado viver com isso.”
Apesar de ter refeito a sua vida, casando, Alice admite que mesmo assim “foi extremamente difícil construir” uma família com o seu marido. “A desconfiança vinha sempre ao de cima, a situação exigia um esforço muito grande para me deixar cativar.” E o pior: “Não foi fácil contar ao meu marido, só o consegui fazer depois da denúncia. Ele sentiu-se um pouco traído, por só lhe contar o que aconteceu ao fim de vários anos.” Com o tempo, o marido “foi aceitando”. “Tornou-se muito o meu pilar, ajuda-me muito.”
O Coração Silenciado surgiu na sequência de todo este processo. “O título foi algo que fui rezando, conforme fui pensando em criar”, diz. “Silenciam-nos não apenas a voz mas também o coração.” Mesmo assim, Alice ainda fala numa decisão que lhe surge da oração: “Quando sofri o abuso, a minha confiança em Deus ficou um bocado abalada. Depois fui percebendo que Deus não tem culpa e que não fazia sentido afastar-me dele, porque foi uma pessoa que fez isto por iniciativa própria. Não fazia sentido deixar de ter a minha fé, e eu precisava da fé para me ajudar a superar isto no dia-a-dia.”
Maioria das vítimas ainda se diz católica

Cuaresma III. Obra de © Enrique Mirones, monge do mosteiro cisterciense de Sobrado dos Monxes, na Galiza.
O testemunho de Alice coincide com a posição da maioria das vítimas: em Julho, os dados intercalares apresentados pela CI indicavam que um total de 61% das pessoas cujos testemunhos tinham sido validados até então continuavam a considerar-se católicas, contra 39% que dizem que não. E entre os que continuam católicos, “a esmagadora maioria são católicos praticantes”. Um dado, considerava a socióloga Ana Nunes de Almeida, ao apresentar esses números, que “implica a Igreja portuguesa, no sentido de ela própria fazer um apelo ao testemunho”.
Alice sublinha: “Para mim, Deus foi sempre um pilar importante. É mais fácil por vezes culpar Deus e não a pessoa certa, mas Deus não tem culpa do que algumas pessoas fazem.” A hierarquia, sim – diz: “A instituição é que tem tido o comportamento de esconder e isso faz com que eu não acredite muito na hierarquia e na instituição.”
Apesar do que diz, já aconteceu Alice estar em conversas informais sobre o tema, na sua paróquia ou em grupos católicos. “Há todo o tipo de atitudes: quem não acredita que isto seja verdade; quem diga que as vítimas é que se põem a jeito, e quem pergunte como é possível que isto tenha acontecido.” Quando se vê no meio dessas conversas, custa-lhe muito ouvir algumas, mas tenta sempre argumentar no sentido de que o agressor é que usa o seu poder para abusar.
E agora o Coração Silenciado: “O site não é nada mais que o sonho de talvez um dia mais tarde ter a capacidade de criar uma associação de pessoas que trabalhem para apoiar as vítimas, prestando acompanhamento psicológico, onde elas se sintam à vontade para partilhar, denunciar e acompanhar outras em processos de denúncia.” Ou seja, Alice quer fazer o que também pede aos bispos.
“Em Portugal não há nenhuma associação de vítimas de abusos de membros da Igreja nem algo onde possam ir, para poder desabafar, dialogar, partilhar a sua história”, lamenta. Por isso, como não tinha outros meios, Alice sentiu que algo que podia fazer era criar um site: “A maioria das pessoas tem acesso à internet, isso faz com que seja um sítio acessível.”
“Eu ia acompanhando as notícias, vi que as coisas não estavam a correr bem e que havia poucos testemunhos”, recorda. “Tenho lidado com o grupo Infancia Roubada, de Espanha, e comecei a sentir necessidade de um sítio onde pudesse partilhar abertamente e onde outras pessoas sentissem o mesmo.”
Mas houve um impulso mais imediato que a levou a decidir pela criação do https://coracaosilenciado.pt/: “Foi quando vi as declarações do bispo do Porto, d. Manuel Linda, a dizer que o abuso não é crime público, depois de várias outras declarações antes dessa, que decidi: achei que não estava a haver dignidade para com as vítimas e nós merecemos dignidade, somos pessoas.”
Num país profundamente católico, sente que a instituição “ainda tem poder” e por isso as pessoas “ainda não se sentem suficientemente seguras e não são respeitadas e acolhidas na sua dor”. Mesmo com o trabalho da CI – muitos dos testemunhos recolhidos são anónimos, recorda, e o número dos casos que apareceram são é “muito reduzido “para aquilo que se sabe que existe”
Os primeiros comentários e reacções foram positivos. Por correio electrónico ou na página do Facebook, Alice já recebeu três dezenas de mensagens. Todas a apoiar. Algumas dão a entender que também foram vítimas, outras dizem-no claramente, algumas são anónimas.
Possivelmente todas elas estarão, como Alice, na expectativa do que seja dito nesta segunda-feira.