
“Lembro-me de um júri, numa prova, me dizer que o meu maior erro era não encarar a plateia e encolher os olhos na direção do chão.” Foto: A Menina (Estocolmo) © Marcin / Pixabay
Desde sempre que engenho esquemas para camuflar a timidez; acho que me tenho saído bem, ninguém desconfia.
Ontem à noite uma simpática senhora aproximou-se do meu colega, sem reparar que eu estava logo atrás, e disse-lhe para dar os parabéns à menina do fogo, que gostou muito do espetáculo mas que a achava antipática, que fugia logo e nem sequer ficava um bocadinho ali no final a dar atenção ao público.
Obviamente que não me atrevi a mostrar que tinha ouvido o comentário – até porque ela, provavelmente, não me reconheceria. Como diz o meu querido encenador, eu tenho um qualquer poder de transformação que me faz não parecer eu quando estou “em cena”.
Sentei-me, como de costume, sob o escuro da noite e longe das pessoas. Esperava a hora de voltar a casa e matutei sobre um excerto que me lembro de ter lido, na “Morgadinha dos canaviais” – de Júlio Dinis, há tanto tempo, mas que nunca mais esqueci. Diz assim: «Não há quem sustente mais tremendas lutas do que os tímidos. A alma revolta-se neles, com toda a violência dos seus instintos, contra não sei que mistério de temperamento, que lhes reprime as expansões. Na aparência é fraqueza e serenidade, mas no íntimo há esforços realizados, que os fortes nem concebem sequer.»
Lembro-me de quando estudava teatro e o meu professor de expressão me dizia que eu desperdiçava a força que tinha no olhar. Lembro-me de um júri, numa prova, me dizer que o meu maior erro era não encarar a plateia e encolher os olhos na direção do chão. Lembro-me das lutas travadas para disfarçar esse medo de ser alguém, esse desconforto da presença de outros em quem não se confia. Era muito novinha, era adolescente, e comecei a imitar os extrovertidos. Admirava-me de encontrar coragem para consegui-lo. Mas facilmente passei a parecer uma jovem segura e extrovertida. Mal se notava a luta interna desenfreada – à qual Júlio Dinis se referia – que eu travava. Lembro-me da fase em que sair de casa me era desconfortável, o simples facto de estar na rua me causava pânico. E qual a melhor estratégia? fingir, simular.
Já confessei, em crónica anterior, que vi o meu pai queimado num incêndio, que o fogo é o meu maior medo e que, por isso mesmo, decidi familiarizar-me com ele. Com a timidez é a mesma coisa; esta vergonha de ter palavras para dizer, ideias a urgir no pensamento, levou-me a simular a segurança. Vou a palco todas as noites fingir que não me importo de ser vista por gente a mais.
Passaram 20 anos desde o dia em que o meu professor me disse que eu desperdiçava o olhar, desde o dia em que júri disse que eu não estava preparada porque me encolhia em direção ao chão e achei que a batalha estava ganha, que a timidez era coisa do passado.
A verdade é que a senhora de ontem à noite me confundiu a timidez com arrogância. A verdade é que passamos a vida a fingir que somos o que não somos. E esta é mais uma delas, das tais violências de que falava o Júlio Dinis.
Ana Sofia Brito começou a trabalhar aos 16 anos em teatro e espetáculos de rua; Depois de dois anos na Universidade de Coimbra estudou teatro, teatro físico e circo em Barcelona, Lisboa e Rio de Janeiro, onde actualmente estuda Letras. Autora dos livros “Em breve, meu amor” e ” O Homem do trator”.