
Oração de Taizé na Igreja de São Domingos, em Lisboa, durante a JMJ: “Na comunidade de Taizé aprendi que se pode conviver abordando Deus de modos diferentes.” Foto © JMJ Lisboa 2023
Este texto não tem uma espinha dorsal. É um daqueles que pretende espelhar a alegria de viver a fé e a esperança que senti, ao assistir e ouvir excertos de notícias sobre a visita do Papa Francisco a Lisboa, durante a Jornada Mundial da Juventude (JMJ), em Agosto de 2023. Recordei-me da minha ida à Taizé (Comunidade de fé em França), num mesmo mês, há 16 anos. Não se tratava, na altura, da jornada mundial, mas também se encontravam lá jovens de muitos lugares do mundo e de diferentes crenças religiosas.
Na comunidade de Taizé e durante a peregrinação que fiz, aprendi que se pode conviver pacificamente abordando Deus de modos diferentes. Conheci o real sentido do ecumenismo, tanto durante os momentos de oração conjunta, quanto nos momentos de reflexão por grupos. Todos nós nos sentíamos chamados e interpelados por um único Deus, independentemente da nossa origem ou credo. O amor de Deus pairava no ar. As formas de O adorar podem variar, mas o fim é o mesmo: ir ao encontro do amor e da esperança para viver a humanidade.
A minha comunidade de fé (aquela na qual tenho participado), o Movimento do Graal, não é só feita de jovens, mas há nele redes de jovens. Foi num desses grupos, organizado por Maria do Loreto Couceiro, do Graal de Portugal, que me juntei. E com ela, com outras quatro jovens portuguesas (a Joana, a Elisabeth, a Sílvia e a Jú) e mais uma americana (a Laura), estive em Taizé. Foi um momento de muito entusiasmo e de certezas que nos permitiu, no regresso às nossas casas, traçar novos rumos. E foi o que aconteceu. Foram variados os rumos que definimos para as nossas vidas, a partir desse encontro: dar aulas fora do país, casar, frequentar mestrados, doutoramentos, ser escritoras, viver para Deus – em comunidade de fé.
Foi esse o legado do amor de Deus, para com todos (exactamente uma das expressões repetidas imensas vezes pelo Papa Francisco, na JMJ). Isto voltou a questionar-me, de um modo que não me permitiu alhear deste evento. Foi também esse amor d’Ele que deu força à família da moçambicana de 18 anos que fez o seu depoimento, durante a vigília de 5 de Agosto, em Lisboa.

Esta jovem afirmou que, juntamente com a sua família, assistiu a alguns ataques terroristas, em Muidume, província de Cabo Delgado, no Norte de Moçambique; antes de se deslocarem para uma outra província, Nampula, em busca de amparo e de algum sossego. Foi rezando que esta família encontrou força no Senhor nosso Deus, para enfrentar a adversidade que vivia. A menina, em parte do seu discurso, refere que foi com fé e esperança que sobreviveram ao ataque terrorista. Só não foram vítimas directas desse ataque, porque, perto dela, os malfeitores dispararam para o ar. Viviam com medo, mas nunca perderam a fé e a esperança de que um dia irão reconstruir a sua vida!
Esse depoimento fez-me recordar uma das canções de Taizé, de um cancioneiro que tive oportunidade de comprar. Aliás, muitos dos jovens fizeram o mesmo e, durante os encontros de grupo, cada um fazia um autógrafo ou colocava o seu endereço na página, cuja música lhe recordava aqueles dias ali passados, ou o interpelasse de forma particular, ou simplesmente fosse aquela que mais tivesse gostado.
A Joana, uma das companheiras de fé que integrava o meu grupo do Graal, dedicou-me o seu autógrafo, na página em que situa a música intitulada “El Senyor”, cuja foto anexo e cuja letra transcrevo (em catalão): “El Senyor és la meva força el Senyor el meu cant. Ell m’ha estat la salvació. En ell confio i no tinc por, en ell confio i no tinc por.” (“O Senhor é a minha força, o Senhor o meu canto. Ele me dá a salvação. Nele eu confio e nada temo.) Escreveu ela: “Querida prima, obrigada pela tua força que vem deste nosso Senhor. Tu já és e serás sempre família. Adoro-te muito.”

Transcrevo o autógrafo por duas grandes razões: a Joana já não se encontra entre nós. Esse motivo é mais do que suficiente para eu partilhar o que me disse. Não se trata de enaltecer alguma vaidade da minha parte, mas importa esclarecer a beleza a partir da qual nos tornámos família. Foi e será sempre uma das melhores amigas que tive nos últimos anos.
A Joana era a afilhada espiritual da Loreto Couceiro, tendo sido, poucos meses antes, baptizada. Já eu era amiga da Loreto, a quem por afinidade trato por madrinha, dado o afecto maternal com que sempre me tem cuidado, o que fazia de mim uma auto-proclamada prima da Joana.
Esta afinidade vem da minha filosofia de vida. Na verdade, da filosofia de vida das famílias africanas. Alguns dos nossos laços de familiaridade nem sempre são consanguíneos, mas é como se fossem e, muitas das vezes, nunca se chega a saber a razão de determinada pessoa pertencer a certa família. Isso nem se põe em questão. Os meus filhos, por exemplo, nunca me questionaram a razão de serem sobrinhos da Joana e ela tratou-os como sobrinhos, até o fim dos seus dias.
Estes pormenores são essenciais para celebrar a fraternidade e a importância de nunca estarmos sozinhos nos caminhos da vida. E é a fraternidade, a força, a fé e a esperança em dias melhores, entre outras coisas, que foram celebradas na JMJ; apoiados, sobretudo, pelo Papa Francisco, representante de Deus na terra, que, através da sua mensagem para a Jornada da Juventude 2023, nos convidou a sermos actores, “sem medo” para mudar o mundo.
A sua mensagem tem como mote a atitude de Maria, que se “levantou e partiu apressadamente (Lc, 1,39); lembrando-nos, ainda, o tema das JMJ no Panamá (2019), que dizia “Eis a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a Tua palavra” (Lc 1,8). Os anos que se seguiram a essa jornada, tal como nos mostra a mensagem do Papa Francisco, foram dedicados a reflectir sobre aquilo que deveria ser a nossa demanda todos os dias, até hoje; tal como as palavras de Jesus: “Jovem, Eu te digo, levanta-te” (cf. Lc 7,14); mais ainda, as palavras que o Senhor disse a São Paulo: “Lavanta-te! Eu te constituo testemunha do que viste” (cf. At 26,16).

É suposto sermos testemunhas da força e da palavra de Deus. Testemunhas do Amor e da Fraternidade, acreditando e tendo esperança para alterar alguns indesejáveis “cursos de vida”, tornando apetecível viver no mundo. Questionando o que está mal. Tal como em outros encontros de jovens, cabe-nos levantarmo-nos e darmos suporte uns aos outros (no mundo vivem-se os mesmos problemas, independentemente dos estágios de desenvolvimento; existe sempre um ser humano mal servido pela vida). O objectivo é fazermos desses momentos a diferença que queremos alterar e ver acontecer. É um momento que nos deve interpelar, desafiar e convidar a outros debates.
A comunicação social, em diferentes países, deu um lugar destaque a esta jornada. Em Moçambique, a RDP África, não deixou os seus créditos em mãos alheias e, é preciso que se diga, a estação mostrou-nos a fotografia do dia a dia, quase momento a momento, deste evento. Já em Moçambique, país laico, os meios de comunicação social não estiveram o “tempo todo” a noticiar o evento, mas também não se alhearam. Noticiaram muitos factos, entre os quais o depoimento da menina de Muidumbe, acima mencionada.
Fui acompanhando, na verdade, a JMJ por vários meios, inclusive por Facebook, a partir do qual (na página de Isaura Feiteira, membro do Movimento Graal), soube que na paróquia de Santa Helena, em Santa Cruz, foram ouvidos poemas de Antero de Quental. Entre eles, A um poeta”, que é um convite a escutarmos e a levantarmo-nos para a luta por um mundo mais pacífico e justo. A minha atenção e este poema tem também a ver com o diálogo que se pode estabelecer entre ele e um outro de Rui de Noronha, poeta moçambicano, intitulado “Surge et ambula”, que sugere que África não se alheie, nem se afaste, do progresso que vai surgindo no hemisfério Norte.
Há um despertar para o qual a mensagem do Papa nos chama. Há um despertar para o qual a poesia, a religião, a natureza ou a humanidade ou o mais que queiramos chamar, nos convida. A verdade é que nenhuma religião sã, ou nenhuma comunidade humana que seja sã, é contra a vontade do amor de Deus, na defesa da vida humana.
Sara Jona Laisse integra o Movimento Graal e é docente na Universidade Católica de Moçambique, extensão de Maputo. Contacto: saralaisse@yahoo.com.br