Do Fundo do Cálice é o título da última obra do padre Joaquim Félix de Carvalho, que apresenta o Calix Mundi e o Cálice de Peregrinação, duas peças concebidas pelo artista plástico norueguês Asbjørn Andresen para a Capela Árvore da Vida, uma obra edificada em madeira no interior do Seminário Conciliar de São Pedro e São Paulo. Publicado pela Universidade Católica Editora, o livro reflecte igualmente sobre a dimensão profética e poética do cálice na liturgia. O 7MARGENS apresenta a seguir o prefácio e o posfácio da obra, escritos pelo padre jesuíta e arquiteto João Norton de Matos e pelo também arquiteto João Alves da Cunha.

Contemporaneidade e tradição
Por João Norton de Matos, SJ
O livro que nos chega às mãos situa-se na continuidade imediata das já conhecidas, em diversos meios, pelo nome de “capelas de Braga”. Estas surpreenderam como obras de arte e de culto renovadoras da linguagem e da cultura material e espiritual da Igreja em Portugal. Dado que a arte suscita a palavra, e a consolidação da relação intrínseca entre a arte do nosso tempo e a sensibilidade litúrgica necessita de ambas, acolhemos este texto com gratidão para com o seu autor. Joaquim Félix de Carvalho, que já tem vindo a responder publicamente, de muitos modos, à necessidade de pensar uma poética da liturgia e das artes litúrgicas, centra-se agora em dois artefactos singulares, alfaias pertencentes à capela da Árvore da Vida.
Este pretexto, aparentemente mínimo, de documentar dois vasos litúrgicos, vai mais longe do que à primeira vista podemos pensar. Descrevendo as suas formas, dando a conhecer a sua fatura, arte e significado, somos conduzidos por uma atenção propriamente fenomenológica ao que de visível aparece e ganha corpo, ao que vemos e tocamos: os objetos nas suas formas, funções, matéria, textura, cor e brilho. Segue-se a narrativa dos procedimentos, os propósitos e as ocasiões, corriqueiras ou graves, que estão na sua origem, os saberes especializados que deram forma extraordinária a objetos aparentemente comuns. Depois, através de uma fina capacidade hermenêutica, o autor desvela a real densidade de sentido que destes cálices transborda. Partindo dos artefactos, escutando as suas dimensões poética e profética, chegamos a um “elogio do cálice” na sua ultimidade teológica, em consonância com o mistério da liturgia. Sem se deter nos picos do sublime, o texto mostra ainda como a estética converge necessariamente com as dimensões pastoral e espiritual da liturgia. Neste contexto, gostaria de destacar o diálogo sapiencial do escultor Asbjørn Andresen com os seminaristas em torno do cálice de peregrinação, resultando no desejo de um compromisso com um novo modo de ser padres hoje.

Contudo, as obras exemplares não surgem por decreto, mas sim através duma constelação propícia de pessoas, dedicação, tradições e sinais dos tempos; dão que pensar. A nobre simplicidade alcançada tem uma história, que não obscurece, antes acentua, um duplo sentido por demais importante para a vida da fé e da liturgia: o simbólico e a tradição. Na unidade do sentir e do sentido, os cálices revestem-se duma qualidade de abertura a significados profundos, despertam-nos os sentidos interiores para a conexão íntima entre a matéria e o espírito, o passado e o presente, a temporalidade e o eterno. Apontam para a origem comum do culto e da cultura, elevada ao seu esplendor na performatividade litúrgica. Por outro lado, os cálices da capela da Árvore da Vida, tal como são apresentados em correlação com outras duas obras-primas da tradição, outros cálices que os antecedem em séculos, inscrevem-se numa temporalidade mais alargada. Estas obras do passado venceram o tempo, e na sua maturidade são investidas de novas competências, tornando-se críticos de arte, testemunhas da consagração dos seus pares contemporâneos, e assim, parceiras na definição de uma tradição viva. Neste arco de tempo mede-se uma continuidade, revaloriza-se a memória, pesa-se o presente, compreende-se a relação intrínseca entre o estado da arte e a vitalidade da comunidade cristã. Apesar da distância temporal que separa os referidos cálices verifica-se uma substância espiritual que os aproxima e contradiz a tentação comum de reduzir a contemporaneidade a uma rutura com o passado. Um tal simplismo tem conduzido às alternativas fáceis do kitsch, do falso bizantino, da estagnação artística, isto é, à negação do espírito, ao bloqueio da liberdade e poder criativo da fé.
Quanto às suas fontes primeiras, estas páginas nascem de sentimentos de espanto e gratidão. O espanto diante do mistério do “fundo do cálice” remete para um instante de vislumbre, em que tudo o que pensávamos conhecer se ilumina e se abre a uma dimensão de profundidade inédita. Intuição sensível, momento privilegiado de revelação? Num instante fugaz da ação ritual, o fundo do cálice parece refletir a substância afetiva de toda a tradição artística, o artefacto singular é elevado à qualidade universal de recetáculo e oferecimento do dom mais inestimável. Algo semelhante ao que Romano Guardini ou Teilhard de Chardin expressaram com igual espanto: “não está ali o mundo?”, “a matéria do mundo oferecida ao fogo do Espírito”? Mas estas páginas brotam igualmente dum sentido de reconhecimento e gratidão para com quem nos legou obras tão exemplarmente dignas, e para com quem hoje continua a torná-las possíveis, artistas e artesãos entre outros protagonistas. O facto de tão simples cálices estarem à altura da expressão do mistério que celebram é digno de relevo. É uma manifestação de sabedoria, inseparavelmente artesanal e espiritual, que não pode cair em esquecimento, num contexto tendencialmente adverso, onde predomina o pragmatismo e a facilidade de mercado.
Finalmente, reconhece-se neste livro, manejado em maquete à hora em que escrevo, uma certa continuidade com o trabalho de joalheiro nele invocado, e os traços com que se faz cultura: um gesto cuidado, um conceito espiritual da cultura material, uma opção pela qualidade, um desejo de retribuição do bem recebido. Ao reconhecimento do que é precioso e bem feito, segue-se a precisão na palavra, a beleza da escrita, o sentido das imagens e da composição. Agradece-se uma nobre simplicidade também no livro, de algum modo festiva e de grande intensidade humana e espiritual.
Do Silêncio. Da Verdade. Ao Essencial.
Por João Alves da Cunha

I.
“Se alguém me perguntasse onde começa a vida litúrgica, eu responderia: com a aprendizagem do silêncio. Sem silêncio tudo fica pouco sério e vão.” Assim se referiu Romano Guardini, em 1939, ao valor incontornável do silêncio na vida litúrgica, silêncio interior permitido pelo silêncio da imaginação e dos sentidos, contrariados nos seus devaneios e na sua tendência natural para a dispersão.
Já poucos anos antes tinha este reconhecido liturgista abordado o tema, ao defender o radical despojamento arquitectónico e decorativo da Igreja de Corpus Christi, em Aachen, Alemanha, do arquiteto Rudolph Schwarz: “O vazio é por si mesmo uma imagem. Dito sem paradoxos: o vazio de espaço e superfície, correctamente articulado, não é uma simples negação da imagem, mas o seu pólo oposto. O vazio relaciona-se com a imagem tal como o silêncio com a palavra. Assim que o homem se abre a ele, experimenta no vazio uma presença misteriosa. Ela exprime do Sagrado aquilo que está para além de forma e conceito.”
Numa época em que dominava ainda o excesso de ruído decorativo na arte litúrgica, a importância do seu silenciamento foi, de facto, uma questão premente e urgente. O silêncio foi assim, inevitavelmente, tema central de um dos números da revista L’Art Sacré publicados em 1954. E nessas páginas, o Pe. Maurice Cocagnac OP alertou para o facto de o excesso decorativo resultar numa arte de evasão que entretinha os cristãos na igreja, fazendo-os fugir às responsabilidades concretas da fé. Já o Pe. Pie-Raymond Régamey OP, em sintonia, defendeu que “o silêncio visível é o meio mais eficaz para convidar os homens a essa intensa união de amor entre eles e com Deus.”
Tratava-se, portanto, de afirmar à partida o silêncio visual, de forma a tornar possível o necessário silêncio interior. Era todo o ruído e perturbação provocados pelos excessos na arte e decoração das igrejas que estavam, por conseguinte, no centro da questão. O Pe. Henrique Noronha de Galvão chamou-lhe “O problema das imagens”, título de um artigo dedicado a esta delicada questão, em cujas linhas afirmou: “O cristão de agora exige da Igreja, mais do que nunca, a realidade mais alta, na mais acessível incarnação. Antes, urge desembaraçá-lo de todas as bugigangas acumuladas por épocas decadentes, é preciso o despojamento.”

II.
“Verdade.” Esta palavra – juntamente com “Pureza”, “Pobreza” e “Paz” -, abriu a Exposição de Arquitectura Religiosa Contemporânea, organizada em 1953 na Igreja de S. Nicolau, em Lisboa, por um grupo de jovens arquitectos, futuros fundadores do Movimento de Renovação da Arte Religiosa (MRAR). Associadas às Bem-Aventuranças, estas quatro palavras foram consideradas, “de entre todas as que foram formuladas no sermão da montanha, aquelas que pela própria natureza da Arte mais explicitamente podem encarnar-se nas suas obras.” Foram, desde modo, fundamento proposto para todos os artistas, incluindo para si próprios. De modo que, ao longo de quase duas décadas de existência, os membros do MRAR procuraram exercitar e promover a verdade construtiva, pureza no traçado, pobreza de materiais e de formas e paz interior nos diversos campos da criação artística a que se dedicaram: arquitectura, pintura, escultura, paramentaria e ourivesaria.
A renovação do desenho das alfaias litúrgicas cedo deu frutos paradigmáticos dos atributos defendidos, destacando-se os quatro exemplares marcados por uma grande sobriedade decorativa e elegância formal que constaram na Exposição de Arte Sacra Moderna, inaugurada pelo MRAR em 1956 na Galeria Pórtico, em Lisboa. Geradas pela mão criadora de João de Almeida, arquitecto e um dos fundadores do Movimento, estas peças revelavam a procura deste autor por uma expressão elementar, a primazia da forma sobre a decoração e o rigor funcional.
Fiel aos princípios originais de verdade, pureza, pobreza e paz, João de Almeida tornou-se, no seu tempo, no principal protagonista da renovação da ourivesaria sacra, dando origem a uma obra significativa que se distinguiu pela preocupação com a verdade no uso dos materiais e dos processos construtivos, a renúncia aos efeitos decorativos como tais e o sentido do funcionalismo litúrgico.
Conforme aponta Ana Campos, “Cálices, patenas e outros artefactos projectados por João de Almeida, podem ser analisados à luz de conceitos da primeira Bauhaus. (…) Nas peças de João de Almeida vemos ainda a procura do bom cumprimento de funções específicas, articulado com configurações nuas, à maneira das da Bauhaus. Por exemplo, a cinzelagem, habitualmente associada a decoração, torna-se um meio para configurar. Não há embelezamentos, nem ostentações que distraiam (…). [João de Almeida] Despiu as formas, tornou-as contemporâneas”.
Meio século depois, Asbjørn Andresen fez seus estes passos, sendo que deste escultor norueguês pode dizer-se que é também um buscador da verdade, ele que afirmou: “Eu gosto de ser absolutamente preciso em algumas coisas, mas não aprecio superfícies polidas, porque não acho que isso seja a verdade.”

III.
“O gosto do essencial, a ausência do supérfluo, o desnudamento das formas”. Para João de Almeida, são estes os traços representativos da verdadeira arte moderna e neles se enquadraram as peças que criou nas décadas de 1950 e 1960.
O mesmo pode afirmar-se do Calix Mundi e do cálice de peregrinação, duas peças concebidas por Asbjørn Andresen que não deixam indiferente nem o mais atento nem o desprevenido. Sendo totalmente do nosso tempo, evocam o eterno e nele têm lugar. São duas obras com personalidades diferentes, mas em ambas não há ostentação, apenas verdade. Obras irmãs, denotam uma mesma fonte e um mesmo propósito: ser obras honestas e puras, que abrem horizontes novos na sua extrema simplicidade justamente alcançada.
Conseguir tamanha essência nesta gestação não está ao alcance de muitos. Apenas os pacientes o conseguem, pois como refere Asbjørn Andresen – um deles -, “A subtração até ao essencial demora mais. (…) O simples é preciso esperá-lo. Tem os seus tempos.” Mas vale a pena.
Dizia o Pe. Marie-Alan Couturier OP que “A glória de Deus não consiste na riqueza e na enormidade, mas na perfeição de uma obra pura. Se as nossas igrejas fossem assim, poderiam recomeçar a ensinar ao mundo que muito pouco chega para o essencial.” Assim são os cálices criados por Asbjørn Andresen: ensinam ao mundo que muito pouco chega para o essencial, porque neles se alcançou a perfeição, a verdade e o silêncio de uma obra pura.