
Partida das Caldas de S. Jorge. Foto: Direitos reservados.
De 6 a 9 de maio, nas vésperas de mais um dia 13, peregrinei a pé até aquele lugar no centro de Portugal e que nos leva até ao centro de nós mesmos: a Cova da Iria, onde a Senhora do Rosário de Fátima nos pediu, através de três pequeninos, a reparação do mal e a oração pela paz, pela conversão dos pecadores e pelo Papa. Foi a segunda vez que peregrinei a pé até este santuário, onde sempre me sinto acolhido, compreendido e reparado. Sempre tenho peregrinado devido à gratidão, mas a condescendência de Deus tem-se servido destas peregrinações como ocasiões de penitência, de crescimento humano e espiritual. Por isso, gostaria de partilhar aqui algumas lições que aprendi.
As coisas não são quando e como queremos, mas quando e do jeito que têm de ser

A minha peregrinação deste ano não estava inicialmente agendada para os dias em que realmente aconteceu e os meus companheiros de caminho seriam outros. Mas Deus escreve certo por linhas tortas e seguramente que eram estes os dias propícios e os camaradas que necessitava. Na verdade, não é por as coisas não serem no tempo e no modo que desejamos que são menos boas. Pelo contrário, quase sempre nos surpreendem com bênçãos positivas. Esta mudança esteve na origem de muitos bens: o compromisso de peregrinar mais uma vez, o conhecimento de tantos “pequeninos” do Reino com uma fé enorme, a possibilidade de estar “fisicamente” presente em horas menos boas,… A primeira lição que aprendi foi esta: as coisas não são quando e como queremos, mas quando e do jeito que tem de ser. Não devemos almejar o que queremos, mas o que realmente necessitamos!
Os pés cuidados de um peregrino e as sapatilhas de um amigo
Quando chegou a hora de fazer o saco para a peregrinação havia que escolher o calçado apropriado. Sabia bem a sua importância para os cerca de 180 km que iria palmilhar. Escolhi dois pares de sapatilhas: umas velhas, mas que ainda não estavam assim tão estragadas para me desfazer delas e umas novas que uso para praticar desporto, mas que me são um pouco justas. Péssima escolha! No primeiro dia, utilizei o primeiro par, e terminei com bolhas. No segundo dia, usei o segundo par, mas como os pés já tinham inchado ficaram de tal maneira apertados que acabaram mais feridos. Pobres pés!
Graças a Deus, apareceram mãos e corações que trataram dos pés e providenciaram um novo par de sapatilhas. Aproveitei este episódio para rezar. Os pés são o membro do corpo humano que sempre está em contacto com o mundo. Essa relação é mediada pelo calçado, um bom símbolo para o sistema de crenças, de valores e de princípios que cada um tem e que possibilita a interação com o mundo. Para poder caminhar bem temos de curar os pés e escolher o calçado justo.
Em primeiro lugar, temos de curar os pés, não só tratando feridas antigas, mas também prevenindo as futuras. Penso que sejam o perdão e o amor, ou seja, a misericórdia essa terapia indispensável. Em segundo lugar, temos de escolher bem o calçado. Sapatilhas em mau estado ou muito pequenas não dão bom resultado. Sapatilhas danificadas ferem-nos, porque, apesar de nos oferecerem uma ilusão de segurança, não resguardam os pés. Sapatilhas pequenas magoam, porque não são adaptadas à nossa identidade única e irrepetível. Muitas vezes na relação com o mundo, usamos sistemas de crenças, valores e princípios de fraca qualidade e desajustados. Se queremos evitar feridas, temos de ser cuidadosos na sua escolha. No entanto, para aceder a estes sapatos não nos bastamos a nós próprios e necessitamos de amigos que nos apresentem um bom calçado, precisamos de irmãos que nos apresentem o verdadeiro amigo que é Jesus. É um calçado de alto preço, mas de uma qualidade enorme! Ninguém se salva sozinho e a baixo custo.
Os mesmos sentimentos de Jesus: confiança, humildade e liberdade

De há uns tempos para cá, devido às minhas lides pastorais, esta tríade tem estado bastante presente e esta peregrinação foi como que a confirmação da sua importância. A confiança, a humildade e a liberdade são o bordão do peregrino. Só confiando é que avançamos no caminho. Temos de confiar em nós. Temos de confiar que não estamos sós. Temos de confiar n’Aquele que nos chama e nos guia! Só sendo humildes podemos caminhar com os outros! Temos de reconhecer quem somos e os nossos limites. Temos de aceitar a nossa insuficiência e pedir ajuda. Temos de deixar que os outros nos ajudem. Temos de saber ajudar os outros. Não basta chegar, é necessário caminhar juntos. Só sendo livres respeitaremos quem somos e o caminho que estamos chamados a fazer. Temos de ser livres de nós mesmos. Se não for livre de mim mesmo, o outro será sempre alguém que vou tentar “escravizar”. Temos de ser livres para o outro, aceitando a sua identidade e os seus tempos e modos. Só quando me dou ao outro, renunciando a mim mesmo, sou verdadeiramente livre para me realizar como pessoa. Temos de ter a liberdade para aceitarmos as regras do “guia” do grupo e para decidir quando é o momento para acelerar ou retardar o passo e quando é o momento de caminhar na fraternidade ou na intimidade com Deus.
Assim, ao terminar esta peregrinação, faço minhas as palavras de Sophia de Mello Breyner Andresen: “Apenas sei que caminho como quem é olhado, amado e conhecido e por isso em cada gesto ponho solenidade e risco.”
Nuno Ventura é padre católico da congregação dos Missionários Passionistas e doutorando em Teologia dogmática.