Fruto de uma tese na Faculdade de Teologia, da autoria de Tiago Fonseca, A Arte de Apresentar o Mistério Trinitário. Imagem, Eucologia e Simbólica (ed. Secretariado Nacional de Liturgia) será apresentado no próximo dia 30, às 21h, na Igreja da Santíssima Trindade, na Covilhã. O autor está neste momento a frequentar o último ano no Seminário Interdiocesano de S. José, em Braga. A apresentação do livro, que resulta da tese orientada pelo padre Joaquim Félix de Carvalho, vice-reitor do Seminário Conciliar de Braga, será feita pelo historiador Carlos Madaleno, diretor do Museu de Arte Sacra da Covilhã. A apresentação será acompanhada de um momento musical e de uma pequena exposição de representações da Santíssima Trindade na iconografia cristã. Publicamos a seguir um excerto do prefácio, da autoria de Joaquim Félix de Carvalho.
Louvor à Trindade
(Antífona)
Louvor à Trindade,
som e vida,
criadora de todos os seres vivos.
Inconfundível louvor das angélicas turbas,
inefável esplendor dos mistérios,
que são ignorados pelos homens, é,
inexaurível fonte de vida em todos.
(Hildegard von Bingen)

(…)
Ler a doxologia em português, por mais esforço que na tradução[1] se ouse, nesta evocação, torna-se ainda escassa a confluência, até das sonoridades musicais, e do ritmo, como se poderia ouvi-la cantada em latim, conforme a compôs Hildegard von Bingen: Laus Trinitati,/ quae sonus et vita/ ac creatrix omnium in vita ipsorum est./ Et quae laus angelicae turbae/ et mirus splendor arcanorum,/ quae hominibus ignota sunt, est,/ et quae in omnibus vita est[2]. Oh, e como resulta exultante numa voz feminina! Na voz de Gundula Anders, por exemplo, conforme se pode ouvir no álbum Voice of The Blood, produzido por Klaus L. Neumann, há anos disponibilizado pela Deutsche Harmonia Mundi[3]. Pois que, assim, e bem melhor é, se ultrapassa um limite, supérfluo: «a não necessidade de tradução da música», como bem evidencia Walter Benjamin, em La Traduction – Le pour et le contre[4].
Que ânimo terá conduzido Tiago Fonseca a este limiar, fronteira de ósculos abissais, a este campo oblíquo de grãos incapazes de absorver completamente tão abundante mistério? Onde se formou o epicentro do seu abalo? Por ser de lá natural, o seu interesse pelo estudo do mistério trinitário gerou-se a partir de uma escultura exposta na igreja da Santíssima Trindade, inaugurada no dia 13 de setembro de 2009, na Covilhã, situada nas imediações da estação, na paróquia de Santa Maria. Qual escultura? Precisamente, a da Santíssima Trindade.
Escavar na areia das imagens
Quando Tiago Fonseca se aproximou para anunciar o tema e solicitar a orientação do estudo, confessei, sem rodeios, a dificuldade em ser um auxílio oportuno, pensando que ele se enquadraria mais na área da teologia dogmática do que na liturgia. E, de súbito, ocorreu-me a conhecida lenda, antiga de séculos, segundo a qual Santo Agostinho, calcorreando uma praia, a refletir sobre o mistério da Santíssima Trindade, terá visto uma criança a brincar. Uma brincadeira utópica (ou distópica?), mas possível na fantasia de uma criança: colocar a imensidão das águas do mar numa pequena cova aberta com a concha de um molusco.

Em sintonia com a lenda, recordei uma passagem lida em A Tarde do Cristianismo. O Tempo da Transformação, obra de Tomáš Halík: «Santo Agostinho percebeu que todos os livros de teologia, de catequese e dogmática são apenas uma pequena concha comparada com a plenitude do mistério de Deus»[5]. E, na sequência do pensamento deste teólogo checo, apontei-lhe a amplidão do horizonte, possível numa sinergia interdisciplinar, e, por conseguinte, também no âmbito da liturgia, para estudar este mistério perseverante na sua totalidade: «O mistério absoluto, mesmo na sua autorrevelação, permanece um mistério: aquilo que nele é evidente e compreensível aponta para o que não é evidente nem compreensível»[6].
Pretendendo trabalhar a «representação» (imagem, eucologia e simbólica) do mistério trinitário, que melhor se poderia dizer «apresentação», como sucessivamente veio a ser assumido para título do presente livro, recordei-lhe o perigo das restrições, na objetivação desse mistério, nomeadamente a partir da fides quae (conteúdo da fé pessoal, a crença de cada um). Até porque, como adverte Halík, «a tentativa de articular e, portanto, em certa medida de objetivar esse mistério, esbarra nos limites do conhecimento racional humano e oferece-nos apenas uma imagem de Deus (também e porquanto Trindade[7]) limitada pela nossa língua e cultura. Enquanto símbolo, pode ser um caminho para Deus, mas não pode ser confundido com o mistério do absoluto em si mesmo. Este mistério é-nos dado de modo plenamente suficiente para a nossa salvação (se lhe abrimos a nossa vida), mas permanece um mistério e, portanto, deixa espaço para a nossa busca e amadurecimento na fé»[8].
Na indagação de Tiago Fonseca, que mais parece um mergulho na densidade do mistério (como banho numa história de relação fidedigna) do que uma extração para a praia do texto, o estudo deste mistério passou por escavar na grande Tradição, sobretudo na areia das imagens. Se a lenda do brincar da criança ofereceu ao hiponense, entre outros dons, a assunção da impossibilidade racionalizante do mistério trinitário, não se pense que a recorrência a outros universos imagéticos, inclusive com Santo Agostinho presente, tenha facilitado a tarefa ao estudioso, como rendição do pensar após uma autorrevelação da Trindade. De facto, a Tiago Fonseca não sucedeu o que se pode contemplar numa pintura a óleo do flamengo Anton Van Dyck, datada de 1628, que se encontrava no convento dos Agostinhos de Antuérpia, embora, neste momento, esteja exposta no Koninklijk Museum voor Schone Kunsten Antwerpen[9].

Acedendo à pintura, conferimos que o tema é um êxtase de Santo Agostinho, na presença da Santíssima Trindade. Em linguagem típica da espiritualidade heroica, que exalta o splendor lucis atque coloris (esplendor da luz e da cor), segundo o estilo do barroco flamengo, em todo o caso, sob influência da tradição italianizante[10], associada ao triunfo da veritas, isto é, da fé católica, Santo Agostinho comparece ao fundo, revestido de capa de asperges em tons auríferos, ladeado por Maria, com um monge e um anjo, na atitude de quem o ampara no êxtase. Vestido de branco, o anjo alado aponta com o indicador para a Santíssima Trindade, que se encontra ao alto, orbitada por anjos aclamantes, sobre nuvens, com o cetro e uma espada de fogo, instrumentos e ramos, entre outros objetos, alguns derramados de um recipiente. Segundo a hermenêutica de Mario Dal Bello, Maria «com uma expressão implorante, suplica a Deus que se revele ao homem, talvez recordando a oração que São Bernardo lhe dirigiu a fim de que Dante pudesse ver Deus»[11]. Mas há outros aspetos que o autor acrescenta: «A Trindade revela-se na luz. É Cristo, vestido de vermelho, com o Espírito entre a sua cabeça e a sua mão que segura o cetro em forma de triângulo com o olho no interior, antigo símbolo do Pai». O que leva a concluir, no sentido de ser «uma representação original e profunda: o Pai vê tudo e tudo cria, o Filho é o caminho para ele, o Espírito Amor e Sabedoria»[12].
Segundo a pintura, em detalhe apresentada, Santo Agostinho, arrebatado em êxtase, não teria necessidade de investigar nada sobre a Santíssima Trindade. Porquê? Porque a contemplava diretamente. Não foi isso que, por seu turno, sucedeu a Tiago Fonseca, pois não entrou em êxtase, nem beneficiou de epifanias particulares da Trindade. Todavia, como esperado, teve quem por ele intercedesse e, a seu modo sem ‘angelismos’, amparasse, apontando a linhas de investigação.

Aceder à relação amante por adentramento
Embora não se tenha ‘extasiado’, como Santo Agostinho na pintura de Anton Van Dyck, Tiago Fonseca confessa, de início, o que constitui uma verdade fundamental da fé, para todos os crentes: «Entrar no âmago deste dogma significa adentrar numa relação hipostática entre o Amante, o Amado e o Amor, relação à qual só temos acesso porque o próprio Deus toma a iniciativa de se revelar e plenamente o faz em Jesus Cristo, rosto visível do Pai» (Introdução, p.33).
Este adentramento, na semelhança de uma iniciação teológica, é feito, no presente livro, em diferentes áreas da sua vivência eclesial, que correspondem à ‘construção’ progressiva dos diversos artigos do ‘símbolo’ trinitário, desde a fundamentação bíblica, à ação litúrgica e à criação artística. Construção que, sendo-lhe estruturante, começa na escuridão do mistério por onde a raiz da Igreja se implanta, desde o seu fundo rizomático, invisível e sempre aprofundável. E, depois, a modos epifânicos de estação vernal, manifesta-se na foliação do pensamento. Isto é, na literacia mistagógica, literária e imagética, no ‘dizer-se’, no ‘ditar-se’ ou no seu ‘plasmar-se’. Mistério que solicita a razão de si, não para existir, mas para ser acedido. E vivido, por participação, entrando-se nesse seio de amplitudes, espelho ou nuvem de vida trinitária. Sim, numa coral plasticidade, idiossincraticamente ajustada à pluralidade cultural, por onde se esclarece ao crente a sua teologia, exposta como oferta e tarefa. E, por conseguinte, em gratidão e diligência (duma procura recíproca da fé e do entender: aquela como ‘lente de razoabilidade’ e este como ‘crença de assentimento’, em dialética sem confusão, no lento lucernário do splendor mysterii), contemplação e doxologia.
A apresentação do mistério da Santíssima Trindade, em cada campo, acima enunciado, que se distribui por uma arquitetura de interior a três capítulos, exigiu a Tiago Fonseca capacidade de síntese e uma ‘focagem’ nas principais evoluções doutrinais. Desejável para este tipo de exercício, a fundamentação do dogma da Santíssima Trindade é desenvolvida, de forma económica, em duas partes, no capítulo I: desde a ‘doutrina trinitária’ à reflexão que, sucessivamente, se fez do dogma. Os textos bíblicos, aferidos em ambos os Testamentos, foram justamente explorados, seja do ponto de vista exegético, seja na sua relação, indicial e real, com o mistério da Trindade. E, note-se, são mais de uma dezena. Pelo que, dilatando-se além dos ‘lugares comuns’, como a visão de Abraão (cf. Génesis 18) e o batismo de Jesus no Jordão (cf. Lucas 3,21-22), por exemplo, tornou a apresentação substancialmente mais enriquecida.

A génese e o progresso da teologia trinitária dão-se com a reflexão patrística, da qual se fornecem os principais contributos, da Tradição Apostólica e da Didaché, e de tantos padres da Igreja, ocidentais e orientais, como Justino, Ireneu de Lyon, Tertuliano, Hilário de Poitiers, Orígenes, Eusébio de Cesareia, Atanásio, etc., e, naturalmente, dos capadócios: Basílio, Gregório de Nissa e Gregório de Nazianzo. Neste período, fundamental em vários aspetos, a reflexão não é sistemática, nos termos de uma tratadística, que surgiria muito mais tarde, mas de natureza pastoral, no aprofundamento das verdades de fé suscitadas pela teoria e praxis da ação pastoral. Assiste-se à criação da linguagem simbólica e litúrgica, associada à teologia do mistério trinitário, que se esclarece paulatinamente, por vezes no contexto de danosas conflituosidades suscitadas por erros, heresias mesmo. E, daí, a necessidade da salvaguarda da ortodoxia. O que vem a suceder, por exemplo, na formulação do Símbolo, de forma complementar, primeiro, no I concílio de Niceia (325) e, em 381, no concílio I de Constantinopla. Doutrina da Trindade, que comparece, também, neste século IV (torna-se conhecido a partir da versão grega presente num sermão de S. Cesário de Arles, mas eventualmente fixada no século V), no Símbolo Quicumque vult, de Santo Atanásio de Alexandria, adotado por várias da Igrejas cristãs.
Poderia questionar-se a não inclusão, neste ponto, de Santo Agostinho, deslocado que foi para o contexto da reflexão posterior. Tiago Fonseca associa-o aos desenvolvimentos do período escolástico, por ele ter alcançado a primeira síntese teológica do mistério trinitário. Desta vez, o hiponense não é chamado à colação pela lenda da criança ou pela pintura do seu êxtase, mas pelos especiais contributos que forneceu à reflexão, através de sermões e, especialmente, pela sua obra De Trinitate[13]. Associado a categorias filosóficas e aos métodos histórico-bíblico e dialético de escolas teológicas, este esforço de sistematização é aperfeiçoado durante a Escolástica, sob o impulso da Primeira Epístola de S. Pedro (cf. 1Pe 3,15). A oferta das razões da esperança cristã traduz-se num aprofundar da inteligência das verdades da fé, através de um fio condutor unificante da sua lógica subjacente. Entre os principais teólogos medievais, Tiago Fonseca elege Ricardo de São Vítor, pela reflexão que fez acerca da vida divina no mistério da Trindade[14].
Enfim, o adentramento até ao âmago relacional das Pessoas da Trindade, que se constituiu em tema central da reflexão após a fixação do respetivo dogma, é explorado desde a categoria da «pericorese». E, para rematar a exposição, detém-se ele na doutrina e problemática do «Filioque». (…)

[1] Hildegard von Bingen, Flor Brilhante, Introdução e tradução Joaquim Félix de Carvalho – José Tolentino Mendonça (Lisboa: Assírio & Alvim, 2004), 37.
[2] Ibidem, 36. A tradução da antífona comparece na epígrafe.
[3] Hildegard von Bingen, «Laus Trinitati. Sequentia», cantada por Gundula Anders, acedido a 29 de março de 2023, https://www.youtube.com/watch?v=VfTEId8h2w8&t=13s.
[4] Walter Benjamim, «A tradução ― os prós e os contras» (tradução de João Barrento), A Phala 1 (2007): 135.
[5] Tomáš Halík, A tarde do Cristianismo. O tempo da transformação (Lisboa: Paulinas, 2022), 31.
[6] Tomáš Halík, A tarde do Cristianismo, 30.
[7] Inciso entre parêntesis da nossa autoria.
[8] Tomáš Halík, A tarde do Cristianismo, 31.
[9]Para ver esta pintura de Anthony van Dyck, Saint Augustine in Ecstasy: https://kmska.be/en/masterpiece/saint-augustine-ecstasy-0 , acedido a 31 de março de 2023.
[10] Cf. Maria Grazia Bernardini, Van Dyck. Riflessi italiani (Milano: Skira, 2004), 41.
[11] Mario Dal Bello, La Trinità nell’arte (Roma dei Merangoli Editrice, 2021), 174-175. Em relação à referência à oração de São Bernardo, sugere-se a consulta do Canto XXXIII da Divina Comédia, onde comparece efetivamente a oração de S. Bernardo, a visão de Deus e da unidade do universo, bem como os mistérios da Trindade e da Encarnação de Cristo, e, por último, o esforço mental de Dante: cf. Dante Alighieri, A Divina Comédia, trad. Vasco Graça Moura (Lisboa: Quetzal, 2020), 881-887.
[12] Mario Dal Bello, La Trinità nell’arte, 175.
[13] Agostinho de Hipona, De Trinitate, PL 42, 819-1098.
[14] Tiago Fonseca teve em conta a sua principal obra: Cf. Ricardo de São Victor, La Trinité, Sources Chrétiennes 63.