
“Sento-me num fulgor de luz / Suspenso bem alto sobre o mar sombrio”. Foto de © Mickael Jonas.
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O desejo arcaico de desvalorizar o tempo reaparece transformado na vontade artística de criar obras fortes o suficiente para parar o tempo. (…) os profundos prazeres do belo (…) tornam o tempo insignificante, chamando-nos a uma realidade que transcende o tempo.
(Karsten Harries, Building and the Terror of Time)
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O que julga ter atravessado os espaços
não saiu do seu lugar
e quem repete o seu nome
ignora o que não se deixa ver
nem se adivinha
prende na boca
o silêncio e mergulha com ele
até ao fundo
nisto consiste a devoção verdadeira
tudo o mais é vaidade
(José Tolentino Mendonça, Eclesiastes)
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Sento-me num fulgor de luz
Suspenso bem alto sobre o mar sombrio
(Robert Louis Stevenson, The Light Keeper [O Faroleiro])
+ (ecos)
Vivemos numa coordenada temporal e espacial que em contínuo se transmuta, atravessando a espessura dos momentos e tacteando a envolvente física. No tempo actual até podemos medir essas coordenadas com precisão cada vez mais rigorosa. Os relógios atómicos associam-se às sincronizações horárias para nos situar no tempo e as grelhas cartográficas indicam a nossa posição num espaço definido. Estas coordenadas implicam o estabelecimento de uma origem, a partir de onde irradiam os anos, eras e períodos; ou os graus, metros e anos‑luz dos meridianos, paralelos, azimutes, quadrantes. Mas esta crono‑cartografia precisa não nos esclarece todos os mistérios da vida: tanto que quanto mais misteriosos e difíceis de esclarecer, mais são atrapalhados por estas medições e localizações exactas.
Do mesmo modo, só na suspensão temporária desses factores conseguimos aproximar-nos melhor da realidade transcendente de Deus que, ela própria, nos é fugaz diante dos olhos e, por ser infinitamente maior, nunca pode ser totalmente abarcada. Vamos conhecendo aos poucos, cada vez de maneira mais completa, juntando peças num mosaico. Mas é sempre uma visão parcial, que nos foge e desconcerta no momento em que pensamos finalmente já ter descoberto tudo. “Quem procuras?”, pergunta-nos (João 20,15).
É nesse momento de suspensão, de silêncio, em que deixamos de procurar activamente, entrando delicadamente no espaço-sem-espaço e no tempo-atemporal, que “mergulhamos com ele até ao fundo” e nos aproximamos do clarão do farol que dissolve as trevas ao varrer a noite [não fosse este jogo de escondidas e pensaríamos nós um dia ter já um domínio total e um conhecimento perfeito daquele que nos procura] para que, pelos vislumbres da beleza da sua presença, nos sintamos chamados a ir procurando mais e sempre de modo renovado.
João Valério é arquitecto e organista.