Tudo está ligado
Nas margens da filosofia (XIX)
A tese de que tudo está ligado tem aparecido recorrentemente na história da filosofia. E imediatamente lembro Espinosa e Leibniz, duas presenças determinantes nos diferentes cursos que leccionei sobre Filosofia Moderna. Em ambos, a ideia da relação de tudo com tudo ocupa um lugar central. O primeiro enfatiza a integração do homem na Natureza, enquanto parte da mesma. O segundo defende a ligação entre toda a matéria, sustentando que tudo está em tudo.
Para Espinosa todos os seres se integram num Todo a que chamou Deus ou Natureza. Segundo ele: “Padecemos enquanto somos partes da Natureza, que não pode conceber-se por si sem as outras partes” (Ética IV, prop. II). Tal como os outros existentes os homens pertencem a esse Todo, que diferentemente se manifestam enquanto “modos” de uma mesma Substância. Embora só os seres dotados de razão tenham capacidade para compreender os fenómenos da Natureza, não deixam por isso de sofrer a actuação das leis que inexoravelmente a regem e que sobre eles actuam.
Para Leibniz toda a matéria está ligada e os corpos (humanos e não humanos) comunicam uns com os outros. Por isso escreve: “(…) todo o corpo se sente de tudo o que se faz no Universo, de tal modo que aquele que vê tudo poderia ler em cada um o que se faz por toda a parte.” (Monadologia, § 61). A harmonia pré-estabelecida é um conceito essencial do sistema leibniziano, no qual se releva a união e a inter-actuação existentes entre todas as coisas. Em tudo há elos de conexão recíproca e tal facto é para o filósofo mais uma prova da existência de um Deus perfeitíssimo que tudo governa.
No século XVII, a ideia de um homem dono e senhor da Natureza é aceite sem problemas, não se vislumbrando a hipótese dos limites que eventualmente se poderiam levantar à sua acção. A revolução industrial nos séculos XVIII e XIX reforça esta visão do mundo, mas paralelamente a inegáveis benefícios trouxe também os seus efeitos perversos. Gradualmente foi-se desenvolvendo uma exploração exaustiva dos recursos naturais sem que se atendesse aos perigos decorrentes desse modus vivendi.
O despertar foi doloroso e impôs-nos um olhar diferente sobre o ambiente circundante. A partir de 1960 intensificam-se os movimentos ambientalistas e a tónica é colocada na relação dos homens com a bioesfera. A Ecologia ganha estatuto científico. Começando por relevar as relações entre os seres vivos e o seu ambiente, gradualmente foi integrando no seu estudo as interacções dos homens com os aspectos económicos, psicológicos, sociais e culturais. Daí a actual importância concedida à Ecologia Integral, uma disciplina muito querida do Papa Francisco, que dela faz o tema central da sua encíclica Laudato si’.
Alguns anos antes do despoletar desta catástrofe mundial que é a pandemia de covid-19, o Papa Francisco alertara-nos para os perigos de uma relação de desrespeito pela Natureza e para a necessidade de vivermos diferentemente. No § 1 da Laudato si’, Francisco recorda a ligação de todos os humanos com a Terra, que amorosamente designa como “nossa irmã”, e à qual chama “a nossa casa comum”. Há que perceber o lugar que ocupamos numa Natureza onde tudo está ligado. Daí a relação de tudo com tudo ser uma tese determinante deste documento pontifício. Nele se escreve que “o nosso corpo é constituído pelos elementos do Planeta; o seu ar permite-nos respirar, e a sua água vivifica-nos e restaura-nos” (LS, 2). Esta pertença humana ao Todo em que se inscreve é uma constante ao longo do texto, tendo como consequência o convite a que todos se unam para defrontar o desafio ambiental que lhes é proposto (LS, 14). Desafio esse que implica reformas estruturais e diferentes políticas macroeconómicas e de mercado, pois como adiante se afirma: “Muitas coisas devem reajustar o seu próprio rumo, mas antes de tudo é a humanidade que precisa mudar. Falta-lhe a consciência de uma origem comum, de uma recíproca pertença e de um futuro partilhado por todos.” (LS, 202).
A encíclica é uma mensagem dirigida à família humana e não só aos crentes. Tem um carácter premonitório, pois embora seja anterior à crise que presentemente vivemos devido à pandemia, apresenta-se como resposta para os tempos futuros pois propõe uma conversão que passe pelos caminhos de uma ecologia integral.
É inegável que os seres humanos têm direito à felicidade, mas esta não é incompatível com o uso regrado dos bens da terra nem com a aceitação de modelos diversificados, colhendo de outras culturas exemplos que proporcionem uma maior sintonia com a Natureza.
A exortação apostólica pós-sinodal Querida Amazónia e [o documento final do Sínodo dos Bispos] Amazónia: Novos Caminhos para a Igreja e para uma Ecologia Integral são documentos mais recentes que reforçam uma abordagem respeitadora da Natureza. Centram-se em culturas diferentes, exortam-nos a encará-las com um olhar receptivo e apresentam-nas como inspiração possível para a solução de alguns dos problemas que enfrentamos. A Amazónia é considerada como “uma carícia de Deus”. Dos nativos podemos receber exemplos de um modo de preservar os ecossistemas, de viver sobriamente, de valorizar a integração cósmica e a felicidade comunitária. A crise provocada pela covid-19 é um repto para que pensemos num modo diferente de habitar o mundo, não só para evitar futuras catástrofes como para estabelecer elos de relações mais fraternas, contribuindo para uma solidariedade global onde o outro seja acolhido na sua diferença, o trabalho humano seja respeitado e valorizado e se dê um lugar primacial à pessoa e não ao dinheiro.
Maria Luísa Ribeiro Ferreira é professora Catedrática de Filosofia da Faculdade de Letras de Universidade de Lisboa.
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