… de facto, não nos seria possível viver sem uma imagem de futuro,
sem aquela fantasia política que permite inventar o amanhã e viver hoje.
A filosofia torna possível a vida do homem, porque lhe permite imaginar,
projetar o futuro e enfrentá-lo. O pensamento, a filosofia, tornam possível o amanhã.
Mas, ao mesmo tempo, interroga-se sobre o tipo de amanhã.
Não podemos mudar o passado, mas podemos escolher o tipo de futuro que queremos.
(Severino Ngoenha, Filosofia Africana. Paulinas, 2018, Maputo.)
Sinto, cada vez mais, necessidade de dialogar com filósofos, a fim de que me ensinem o equilíbrio necessário para prosseguir como humana. Tenho-me preocupado em como criar e viver Ubuntu, termo que caracteriza uma filosofia de vida africana, a partir da qual se preconiza apoio mútuo entre seres humanos. A filosofia vive da defesa do bem-estar mútuo, no qual se defende “eu sou, porque tu és”, ou seja, só estarei bem se o outro estiver, daí que o apoio mútuo seja sempre premente. É difícil fazê-lo, mas nada melhor que tentar. Hoje corremos muito e há coisas que ficam por fazer, sobretudo, construir e cuidar a Humanidade.
Escrevi este texto num dia em que o mundo chorava a morte de um fotógrafo suíço que morreu de hipotermia, em Paris. Caiu na rua e ficou muitas horas, sem socorro. Diz-se que provavelmente terá sido visto por muitos, mas não foi socorrido. Apontam, dentre muitos, dois motivos principais para a falta de socorro: a pressa das pessoas em não observar o outro e a indiferença que temos perante os mendigos ou perante quem vemos na rua em necessidade de apoio que não damos. Não damos porque o mundo trouxe-nos decepções que nos fazem não parar. Quantas pessoas não há que ficaram com problemas, após ter ajudado alguém? É claro que esse motivo não é suficiente para que não cumpramos com a nossa missão de humanos, a de construir e cuidar a Humanidade. É claro que não. Mas à parte os receios de nos metermos num imbróglio, de facto, não paramos. Não temos tempo. Não o criamos nem temos, nem em Paris, nem na Suíça e nem em Moçambique.
Dizia-se que o Ocidente tinha o relógio e África o tempo. Essa já é uma verdade abalada, porque vivemos entre a modernidade e a antiguidade, sobretudo numa mobilidade em que tudo se contamina. Entretanto, a antiguidade pede-nos tempo, mas inserirmo-nos na modernidade, custa o seu tempo. Uma hipervalorização de ambas, sacrifica a humanidade.
Faço essa afirmação numa semana na qual imensos afazeres deixaram-me intranquila. Sou docente universitária, recordo. Sou também gestora cultural numa Fundação. Venho de umas férias, que não sei se o foram, de facto. Não sei se um docente universitário tem férias. Terminam as aulas, mas a orientação e a arguição de teses, bem como a escrita de artigos científicos para entregar, não param. Os centros de pesquisa científica também não param de exigir o cumprimento de determinadas metas e a sugestão de construções futuras. Há uma Humanidade a ser construída hoje, para o amanhã. Enfim, mas interessa-me mesmo falar sobre a busca de equilíbrio.
Estou numa semana na qual se sucedem deposições de flores de familiares que pereceram em tempos tensos da covid-19. Não tendo podido participar, ao menos no enterro de entes queridos, vale uma ida às suas campas, para depor flores. Até aí, ajeita-se um tempinho. O difícil é o após deposição de flores. Depois da ida ao cemitério, manda a tradição ir-se às casas dos familiares do falecido para fazer orações e “tomar um chá em honra do defunto”. Para isso também se arranja um jeito. Entretanto a intranquilidade começa no momento em que se constata que a cerimónia nunca mais termina, porque quem a dirige tem “todo o tempo do mundo”. Canta-se sem fim. Depois deve-se comer (e o chá do antigamente passou a ser um buffet-banquete), porque mais do que um símbolo de confraternização e lembrança da vida do morto, constitui uma dívida. Deve-se ficar a comer, para não deixar a ideia de se estar a desprezar a casa ou a família do defunto, portanto, deve haver tempo. Muito tempo, porque leva-se a mal a quem não fica a cumprir com todas as etapas.
Para os mais velhos sempre há tempo. Para os jovens falta tempo e paciência para cumprir com uma única rotina durante horas a fio. E eu, que também sou uma “jovem professora”, sofro. Tenho vivido emoções fortes com isso. Por um lado, pelo desejo de ser cumpridora e seguidora do pressuposto para confortar a família enlutada (cumprindo com os meus sentimentos pela perda e cumprindo ainda com os preceitos da tradição), por outro, pela necessidade de estar em casa a terminar um texto ou a preparar uma aula. Fico dividida, intranquila, mas sempre em dívida, claro. Aprender a medida do equilíbrio é um exercício interminável.
Pergunto-me qual é que será a medida certa, para fazer a Humanidade e estou ciente da importância de se cuidar do outro. Não cuidamos a humanidade, quando não paramos e apoiamos quem de nós precisa na rua. Também não o fazemos, quando não confortamos os ente-queridos de um familiar falecido ou não cumprimos a cerimónia ligada ao nosso familiar defunto. Além disso, não cuidamos da Humanidade, quando não orientamos ou arguimos as teses dos nossos alunos ou ainda, quando não cumprimos com os prazos exigidos pelos centros de pesquisa científica. Após esta reflexão, passo a compreender a razão de se dizer que somos seres em construção. Ainda assim, não satisfeita, pois há que se construir o futuro, cuidando a Humanidade, exercícios complementares, que exigem demasiado tempo e atenção da nossa parte.
Sara Jona Laisse é docente de Técnicas de Expressão e Comunicação na Universidade Católica de Moçambique e membro do Graal – Movimento Internacional de Mulheres Cristãs. Contacto: saralaisse@yahoo.com.br.