
“Alguns não querem abandonar o seu lugar, a sua casa, e ficam, sujeitando-se à fome, ao frio, à privação, ao desconhecido e à morte.” Foto © Vikabest88/Depositphotos.
Campo de Refugiados
A fugitiva disse que na terra
outrora sua havia árvores
e a sombra. Que outra fala
mais bela do que a sua,
mulher no chão seco,
solo sob o sol sem fim?
(Fiama Hasse Pais Brandão)
Tem-se escrito abundantemente sobre este mês e meio de guerra na Ucrânia que, por estar mais perto de nós, nos preocupa… Temos medo do que virá. Medo do que um psicopata “iluminado” possa fazer, na cegueira dos seus atos e ao povo que governa. Já o fez na Síria, na Tchetchénia, no Afeganistão, lugares mais remotos de nós, mas não menos importantes. Constatamos a imensa vulnerabilidade da Europa e a paralisia em que estamos suspensos por não poder ajudar mais a Ucrânia. Sem dúvida temos de perguntar: quem ganha com esta guerra? Por onde anda o lóbi das armas? Qual o papel da OTAN/NATO? Como denunciamos a ausência de transparência quanto a estas matérias? Indo mais longe, como aceitamos ainda que as coisas não são isto ou aquilo, numa visão simplista? A guerra é, foi e será sempre um atentado aos valores da vida. Pela minha parte afirmo que é um atentado aos valores evangélicos. As duas últimas grandes guerras demonstraram isso mesmo. Será que a humanidade não aprendeu com elas? Enuncio estas questões por serem do foro ético.
Nesta guerra devastadora aprendemos a cerrar fileiras e acolhemos milhares de refugiados – 3,77 milhões, números de há dias –, sobretudo mulheres, crianças e velhos, exatamente os mais vulneráveis. Os homens, objeto de uma mobilização geral, tiveram de ficar. As imagens que passam nas televisões ou nas redes sociais destroçam-nos o coração, assombram as nossas noites porque nunca tínhamos visto assim uma guerra “em direto”.
“Não sei, meus filhos, não sei que mundo será o vosso” afirmava Jorge de Sena. Vamos ter de “apertar o cinto” ainda que saibamos que muitos vão enriquecer ainda mais com esta guerra. Em Portugal, os índices de pobreza aumentaram.
Tantos tiveram de abandonar o seu lugar de vida, perderam o seu “direito ao lugar” – bebés e crianças de colo, mulheres grávidas, velhos que mal podem caminhar, não sabendo quando e se poderão voltar, se a sua casa estará intacta ou destruída, se as escolas funcionarão, se os hospitais os poderão receber, se poderão voltar a levar os filhos ao parque infantil perto de casa… Alguns não querem abandonar o seu lugar, a sua casa, e ficam, sujeitando-se à fome, ao frio, à privação, ao desconhecido e à morte. Mesmo os que ficaram perderam o “direito ao [seu] lugar”, um direito básico do ser humano.
Um projeto do Graal e da Fundação Gonçalo da Silveira, desenvolvido ainda antes destes dias de chumbo (Projeto Ligações), publicou uma “Carta Aberta pelo Direito ao Lugar”.
Essa Carta Aberta, subscrita por 42 organizações da sociedade civil, tem tido grande repercussão a nível nacional e internacional e já foi divulgada no 7MARGENS.
O conteúdo e dinâmica alcançada por esta Carta está a evoluir para um “Movimento pelo Direito ao Lugar”. São abordadas questões tão importantes como o êxodo das zonas rurais para as grandes cidades onde ainda é possível arranjar trabalho (ainda que precário…) ou uma profissão condigna; o movimento das pessoas residentes nos centros urbanos – onde é impossível pagar as rendas inflacionadas – para as periferias das cidades, avolumando a desigualdade social e construindo “guetos”, que refletem a perda do “direito ao lugar”. Na perspetiva da Carta, “ter direito ao lugar é ter a possibilidade de viver no lugar e de viver o lugar: não apenas viver mas também usufruir… Esta Carta propõe medidas ao nível do acesso à habitação, aos espaços públicos e aos transportes, à mobilidade a pé e de bicicleta, no caso das áreas urbanas. Para as áreas rurais, a Carta propõe medidas relativas à economia e emprego, à manutenção dos serviços de interesse geral, ao acolhimento e atratividade.
O verdadeiro êxodo do povo ucraniano, forçado a deixar a sua terra, trouxe-me ao pensamento esta importante Carta e amplia, para mim, a problemática, dando-lhe uma dimensão transnacional. Que vai acontecer aos milhares (milhões) de refugiados ucranianos que perderam o seu direito ao lugar? Alguma vez poderão regressar à sua terra, à terra dos seus antepassados? Que farão, passada a euforia generosa de os acolher? Vamos conceder-lhes oportunidades de recomeçar a vida?
Sou parte da equipa coordenadora de uma Rede Transnacional de Migrantes e Refugiados criada pelo Movimento do Graal há cerca de cinco anos. Várias de nós, em Portugal como noutros países de diferentes continentes, trabalhamos ou trabalhámos profissionalmente ou em regime de voluntariado com populações migrantes ou refugiadas, em países tão díspares como Portugal e Itália, México e Equador, Brasil, Estados Unidos e Canadá, Austrália e Filipinas, Tanzânia (com o povo masai), Moçambique (os refugiados de Pemba) ou na África do Sul. Partilhamos experiências, iniciativas, projetos, questões; produzimos pensamento e partilhamos documentação relevante. Articulamos esforços, apesar de sermos de países e contextos tão diferentes. Diríamos que o nosso pensamento tem evoluído da responsabilidade de acolher para incluir o “direito a não ter de emigrar”, de poder ficar a viver no seu lugar, com condições de vida – económicas e sociais – e de trabalho, de não-guerra, de segurança e educação, de não discriminação de género ou em virtude da orientação sexual, de raça ou de etnia, de respeito e acolhimento entre as religiões.

A fugitiva disse que na terra
outrora sua havia árvores
e a sombra
Num sentido ainda mais amplo, que fazemos aos refugiados do clima e de outras guerras, na consciência de que somos todos corresponsáveis pelas alterações climáticas ou, em alguns casos, pela perpetuação de situações de violência e de falta de diálogo? Esquecemos o cemitério em que se tornou o Mediterrâneo? Esquecemos a Europa-fortaleza que continuamos a ser? E o “muro da vergonha” entre os Estados Unidos e o México, dos 470.000 migrantes e refugiados da América Central ou do Haiti (depois do sismo devastador), das mulheres e crianças vítimas de tráfico? Esses não terão também o direito a ser acolhidos ou de verem reconhecido o novo direito de “ficarem no seu lugar”? Uma verdadeira Via-Sacra de povos que se deslocam carregando a sua Cruz!
Relembro o livro de Timothy Radcliffe que tem como subtítulo – “a imaginação cristã para elevar o real” (A Arte de Viver em Deus, Paulinas, 2021, com um excelente prefácio do padre Frazão Correia, SJ) e cito: “A imaginação é a porta pela qual nos furtamos aos limites de qualquer modo reducionista de ver a realidade.” (p. 25)
Assim na Ucrânia que é parte da Europa. Precisamos de imaginação para encontrar soluções criativas, visionárias. De muita e eficaz diplomacia que não se fique por meras declarações de intenções. De inventividade nas soluções, vendo para além do imediato. Sim, a Europa “concertou-se” e foi capaz de um projeto coletivo de solidariedade e cidadania. Reconhecemo-nos neste movimento generoso e empático de hospitalidade, na esperança de que a guerra acabe depressa e os ucranianos possam regressar ao seu lugar. Fomos buscá-los às fronteiras trazendo-os para um lugar seguro enquanto deixávamos ficar mantimentos e equipamento necessário aos que ficavam. Partilhámos os nossos bens, as nossas casas, a nossa mesa, tornando-nos mais frugais. Um exemplo de responsabilidade pelo Outro (Lévinas) porque o Outro me/nos faz existir eticamente.
Mas talvez valha a pena pensar, numa dimensão cristã e universal, quem são os Outros. Dizia-me alguém falando do povo ucraniano: “… eles são mais como nós…”. Nas palavras lidas no Público de 31 de março, tão bem formuladas por Paulo César Gonçalves, “não teremos também a obrigação de respeitar o distinto?” Todos os outros não terão também o direito a um lugar, ao seu lugar? Esta pode ser para os cristãos uma intensa reflexão quaresmal. Quantos Êxodos ou Via(s)-Sacra(s) conhecemos? Quantos têm encontrado um Simão de Cirene que saiu do seu lugar para ajudar Jesus a carregar a cruz ou uma Verónica que se desloca para, simplesmente, enxugar o rosto macerado do Cristo a caminho da Crucificação? A Quaresma desafia-nos a alimentar esta compaixão universal que é o apelo de Jesus Crucificado.

Que outra fala
mais bela do que a sua,
mulher no chão seco
solo sob o sol sem fim?
A propósito de “fala mais bela”, não posso esquecer a imagem sem palavras que passou há dias nas televisões portuguesas de um palhaço vestido a rigor – vim a saber que se tratava de um médico polaco – que faz rir uma criança chorosa com os seus malabarismos! Que imagem poderosa do que pode ser o acolhimento que traz a alegria da Ressurreição!
Quaresma é tempo de reconciliação, de jejum alegre, de generosidade na partilha de bens, de oração no silêncio dos nossos corações. Quaresma é tempo de Esperança até à Páscoa da Ressurreição. Quaresma é caminho de Ressurreição de todos nós, os que se assumem cristãos, com Cristo Jesus:
Vamos ressuscitados colher flores!
(…) Vamos àquele cabeço
Engrinaldar a esperança!
(Miguel Torga)
Teresa Vasconcelos é professora do Ensino Superior e participante no Movimento do Graal; contacto: t.m.vasconcelos49@gmail.com.