Um armazém de crianças
Um dos outros aspetos da questão que não pode ser esquecido é este: a prática da “gestação de substituição” é, na generalidade dos países de origem dos seus requerentes aqui em causa, punida criminalmente, nalguns países em termos absolutos, noutros na sua modalidade comercial, a de que aqui se trata. Não pode um Estado facilitar da forma que se pretende a consumação de uma prática que ele qualifica como crime.
Este episódio revela, porém, mais uma vez, e contra o que será a intenção da referida empresa comercial, a desumanidade da prática da “gestação de substituição”. As imagens que nos chegam fazem lembrar as de um armazém de uma das muitas fábricas que nesta altura, devido à pandemia que atinge o mundo inteiro, quebraram a sua cadeia de fornecimentos. Com essa prática, na verdade, quer a mulher gestante, quer a criança fruto da gestação, são reduzidas a objeto de um contrato, neste caso comercial (mas a situação só nalguma medida difere quando o contrato é supostamente gratuito). O objeto do contrato aguarda que os clientes que o encomendaram o venham levantar.
Aquelas crianças são privadas do caloroso acolhimento do corpo materno. É assim neste caso, mas é assim também em qualquer outra situação de “gestação de substituição”, mesmo que elas não permaneçam em berçários coletivos durante tanto tempo. Entre a mãe gestante e a criança nascem laços de vinculação estreitíssimos que, por imposição de um contrato, são quebrados violenta e abruptamente à nascença, tornando obrigatório para a mulher gestante (a mãe) o abandono do seu filho e a renúncia à mais espontânea, instintiva e natural tendência que é a de continuar a cuidar da vida de que cuidou durante nove meses. Para evitar essa quebra e essa violência, a mulher pode tentar evitar essa vinculação, o que será igualmente danoso, para ela e para a criança.
Esta experiência traumática fere a criança, como sucede em qualquer situação de abandono. Há quem afirme, a este respeito, que a criança sofre a “morte psíquica” da mãe. E fere, obviamente, a mãe gestante. Só o desespero de mulheres que não encontram meios que lhes garantam uma subsistência digna as leva a aceitar esta prática. Não é por acaso que ela tem ocorrido em larga escala em países como a Índia e a Tailândia (países que, entretanto, a vêm restringido) e a Ucrânia. É notório o contraste entre os requerentes, em geral de países ricos, e as mulheres gestantes, muito pobres.
Quando se fala de “ecologia humana” (na linha dos Papas São João Paulo II, Bento XVI e Francisco), como de uma harmonia natural a respeitar também no âmbito da sexualidade e do início e fim da vida humana, vem-me sempre à mente este exemplo, como claro e grave atentado a essa harmonia e a essa ecologia.
Este episódio suscitou o eco das vozes que se têm batido contra a prática da “gestação de substituição”. Os bispos ucranianos reafirmaram a doutrina da Igreja Católica a este respeito. Mas as vozes que mais alto se têm feito ouvir, a propósito desta situação e de outras, são as de organizações feministas que não aceitam esta forma de redução do corpo da mulher ao que seria próprio de uma incubadora e de exploração do desespero das mulheres pobres. Ainda a propósito deste episódio, organismos oficiais ucranianos de defesa dos direitos humanos e dos direitos das crianças advogaram a alteração da lei que nesse país permite a “gestação de substituição”. E esta ocasião serviu de pretexto para reforçar a luta em prol da proibição universal desta prática, pelo menos na sua modalidade comercial.
Poderá perguntar-se: mas o que fazer a estas crianças assim abandonadas? Essas organizações afirmam: deveriam ser entregues às mães gestantes, ou, se estas não tiverem condições para delas cuidar, confiadas a famílias adotantes.
Esta situação dramática deveria alertar os países em que, como sucede em Portugal, ainda não terminou a discussão sobre a legalização da “gestação de substituição”. É verdade que não é a sua prática comercial que entre nós se discute. Mas os malefícios da prática não desaparecem com a sua gratuidade (que também pode ser subvertida através do pagamento de despesas encapotadas). A instrumentalização da mãe gestantes e da criança, assim como os traumas decorrentes do abandono, não deixam de existir, mesmo sem a exploração comercial.
Pedro Vaz Patto é presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz, da Igreja Católica