
Tre Piani
A propósito de um outro – belíssimo – filme A Metamorfose dos Pássaros, da realizadora portuguesa Catarina Vasconcelos, alguém escreveu que ‘a família é lugar de conforto, mas também lugar de confronto’. Creio que pode ser uma pista interessante para se olhar para o último filme de Nanni Moretti, Três Andares. Trata-se, de facto, do drama (destino ou vida) de quatro famílias que acabam tragicamente entrelaçadas. Todas vivem no mesmo prédio. Todas poderiam ter uma vida boa, em razão da situação económica e profissional. Mas o filme é precisamente sobre a sua (nossa) dificuldade de viver juntos.
Disse o próprio realizador: “Aquele prédio simboliza a nossa tendência para viver vidas isoladas uns dos outros, longe de uma comunidade humana que pensávamos já não existir. Mas a experiência incrível da pandemia provou-nos o contrário. É como se ela tivesse desmascarado uma grande mentira: pensarmos que podíamos passar sem a colectividade. O filme foi rodado antes, mas é como se eu tivesse antecipado o que iria passar-se, depois de o escrever. É um convite a sair de si mesmo e ir ao encontro do outro, o que parece cada vez mais necessário, não apenas na vida privada mas também na vida pública.”
Adaptado de um romance do autor israelita Eshkol Nevo – o que acontece pela primeira vez na filmografia de Moretti – Três Andares começa de maneira ‘violenta’: um condutor (veremos depois que é um jovem), manifestamente embriagado, entra literalmente com o carro por uma casa dentro, depois de ter atropelado mortalmente uma mulher. É a partir desta abertura inicial que o filme vai desenrolar-se, quando os habitantes do prédio saem para ver o que tinha acontecido. As suas histórias começam a entrelaçar-se. O jovem é o filho de uma das famílias que moram no prédio, um casal de magistrados, que irá recusar-se a ajudar o filho. Ele acabará por ir para a prisão, mas isso deixará feridas na família difíceis de sarar. Outra das famílias tem uma filha pequena que, às vezes por necessidade, deixa nuns vizinhos já reformados. Mas o pai, depois de um incidente, passa a viver cheio de medos, transtornado, porque não lhe sai da cabeça que o seu vizinho idoso pode ter abusado da filha. Apesar da serenidade da esposa, aquela angústia dele vai complicar-lhe a vida. Monica, outra das moradoras, no início do filme é a primeira a sair do prédio, sozinha e já com as dores do parto. É casada mas o marido, por causa do trabalho, está quase sempre ausente, e ela lida mal com essa solidão. Vive apavorada e ansiosa com medo de acabar louca, como a sua mãe. O que acontecerá.
Três Andares é assim um ‘filme coral’ que nos faz acompanhar todos estes acontecimentos dessas famílias, durante dez anos, mostrando-nos as escolhas de cada um e as suas consequências. Intransigência, desconfiança, egoísmo, medo, culpabilidade são alguns dos sentimentos vividos por cada um, por cada família, mas também pela própria sociedade. Disse Nanni Moretti, n mesma entrevista: “Procurei explorar a sua humanidade e as suas fragilidades nas suas relações com os outros, compreender as suas razões para agir assim, sem as julgar.”
Mas o realizador não se deixa enredar nem ficar no fatalismo ou no pessimismo. O filme acaba com a possibilidade da esperança e da redenção, com a luz a brilhar, se pensarmos nomeadamente em Dora, a mãe do jovem Andrea, que faz um grande caminho de mudança. E se pensarmos também naquela cena do baile que invade a rua e simboliza a irrupção do mundo exterior. No meio de um filme tão austero e dramático, aquele sinal de alegria e de festa é um convite a “não ficarmos encerrados nos nossos três andares”.
Três Andares, de Nanni Moretti
Título original: Tre Piani
Género: Drama, Comédia
ITA/FRA, 2021, Cores, 119 min., M/12
Manuel Mendes é padre católico e pároco de Esmoriz (Ovar). Texto inicialmente publicado no número de Dezembro 2021 da revista Mensageiro de Santo António.