
Filme Adeus à noite
O primeiro mérito do último filme de André Téchiné O Adeus à Noite – que começa com a profusão e beleza de um imenso cerejal em flor rapidamente ensombrado por um eclipse – é o de nos obrigar a (re)pensar – a não deixar esquecer, apesar de aparentemente estar mais adormecido – o complicado problema que é a sedução exercida pelo jihadismo sobre muitos jovens, franceses nomeadamente.
O próprio Téchiné, referindo-se ao filme, fala dessa atracção “como um desejo furioso de sacrifício”, acrescentando: “E eu achei este desejo escaldante, terrível, suscetível de despertar interesse em qualquer um de nós”. “Quando Alex e Lila tomam este novo rosto monstruoso, procuram um novo enraizamento, há como que um chamamento, uma conversão maléfica num país desconhecido…”, disse ainda o realizador (Expresso, revista E, 1 de Agosto).
Creio que esta é uma boa porta para entrar e ler este filme: o que é que a nossa sociedade ocidental não está a ser capaz de oferecer aos jovens que os leva a sentir a vida como um enfado, um imenso tédio, e os obriga a procurar – ingenuamente e erradamente – esse desejo furioso de sacrifício? O que é que a família e a escola não estão a ser capazes de fazer para educar os jovens de maneira a que eles se comprometam com grandes causas que possam mobilizá-los? Ou então: o que é que verdadeiramente seduz os jovens nessa sua atracção pela “radicalização religiosa” e por aqueles “mecanismos de purificação” por nós deitados fora juntamente com a água do banho? Qual é a razão da incapacidade da Igreja e das comunidades paroquiais para seduzir os jovens? Terão os movimentos eclesiais esta capacidade? E a que preço?
São algumas das perguntas suscitadas por este filme de André Téchiné, um cineasta que gosta de pensar devagar a sua forma de reagir aos problemas da sociedade, sobretudo aqueles que afectam os jovens.
Escrito a partir do livro de David Thomson, Les Français Jihadistes (que recolhe entrevistas de jovens que passaram por aquela experiência), o filme apanha e acompanha Alex e Lila nos seus preparativos da viagem que os levará à Síria para se juntarem ao “estado islâmico” e cumprirem o sonho de dar a vida como fazem os heróis. No entanto, a personagem que marca o filme do início ao fim é a da avó de Alex, Muriel, incrivelmente interpretada por Catherine Deneuve. É ela que, desde cedo, se apercebe que algo de estranho e de secreto se está a passar com o neto, e não vai descansar até descobrir a verdade, usando todas as armas, por mais que lhe doa. É ela que carrega em si todas as perguntas, toda a incapacidade para compreender, todas as ambiguidades, todos os sentimentos de culpa, todo o desespero.
Nesse longo percurso que acontece sobretudo na quinta de Muriel, onde para além das cerejeiras há uma escola de equitação, vamos reparando em algumas coisas: por exemplo, no modo como a captação e doutrinação daqueles jovens é feita. Afinal, não se trata de uma verdadeira conversão: eles não vão à mesquita, é quase tudo pela internet (desde o namoro até aos modelos de cartas para despedida da família), num controlo permanente por parte dos doutrinadores, afinal muito pouco coerentes. Por causa do desenraizamento, também não se deve deixar de notar como Alex e Lila, de modos diferentes, não têm pais; e como a relação com os “avós” (Lila vive com um idoso e trabalha num lar de idosos, enquanto Alex tem a avó e Youssef) não responde a essa falta. Ainda assim, é a avó que salva o neto ao denunciá-lo. É este o verdadeiro sacrifício.
E por isso, talvez haja esperança. Depois de ter caído doente e ser internada, a seguir à prisão do neto, Muriel vai à quinta. As cerejeiras já estão vermelhas de cerejas, que estão a ser apanhadas. Um dos que as andam a colher é Fouad, antigo jihadista, que tinha descoberto a mentira daquela sedução. Ele desce para agradecer o que Muriel tinha feito e incentiva-a a não desistir e a escrever ao neto. O sorriso e o ânimo regressam aos olhos tristes e ensombrados de Muriel.
O Adeus à Noite, de André Téchiné
Título original: L’adieu a la nuit
Com Catherine Deneuve, Kacey Mottet Klein, Oulaya Amamra, Stéphane Bak
Fra/Ale, 2019; 104 min; drama, M/12