
A Árvore de Jessé (anónimo, 1500), Rijksmuseum Twente, Enschede, Países Baixos
Se existem versículos do Novo Testamento que a maioria dos leitores normalmente considera pouco apelativos à leitura são as genealogias de Jesus que constam nos inícios dos evangelhos de Mateus e de Lucas. Afinal a quem interessa a genealogia do Senhor Jesus, a sua linhagem? Pode-se até reconhecer nelas nomes de alguns dos patriarcas, reis de Israel ou de Judá, mas de facto não é uma leitura que, à primeira vista, revele algum valor devocional. Mas, afinal para que serve uma genealogia? Qual a sua utilidade para os povos orientais, neste caso particular, para o povo judeu? Grosso modo, as sociedades na antiguidade eram organizadas segundo as linhagens das suas tribos a fim de preservarem a sua identidade e possessões em forma de terras, daí a importância da árvore genealógica nessas sociedades agrícolas do Oriente.
Verifica-se igualmente no livro de Esdras (Ed 2:61-63) e no de Neemias (Ne 7:63-65) a importante tarefa de estabelecer a genealogia do povo judeu, uma vez que, pela Lei de Moisés, só poderiam ser admitidos ao serviço no santuário e ao sacerdócio aqueles que tinham uma ascendência sem mácula e pura. Na época de Jesus, competia ao Sinédrio, o supremo conselho de juízes [religiosos], examinar a legalidade das origens de determinado sacerdote para acesso ao serviço religioso. Obviamente que, para além da classe sacerdotal, qualquer judeu interessado podia averiguar a sua ascendência e tribo. Paulo, por exemplo, informa-nos numa das suas cartas que era da tribo de Benjamim (Filipenses 3:5).
Analise-se um pouco a genealogia de Jesus apresentada por Mateus no seu primeiro capítulo e que se socorre da linhagem de José. Tendo em mente que este evangelho, pela quantidade de citações que faz do Antigo Testamento, é escrito para judeus que se tinham convertido ao cristianismo, ou seja, cristãos de raça israelita, Mateus tem como objetivo demonstrar e comprovar que Jesus é o Messias esperado e que é descendente de Abraão, da Tribo de Judá e de Davi conforme as profecias (2 Samuel 7:16; Salmo 89:3-4).
Essa genealogia está divida em três grupos de 14 gerações, cada um deles correspondentes a três períodos da história do povo judeu: de Abraão até Davi, de Davi até à deportação para a Babilónia e desde a deportação para a Babilónia até Jesus (vers. 17). Importa para já reter apenas a genealogia que vai de Abraão até ao rei Salomão:
“Livro da origem de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abraão. Abraão gerou Isaac; Isaac gerou Jacó; Jacó gerou Judá e seus irmãos; Judá gerou, de Tamar, Farés e Zara; Farés gerou Esrom; Esrom gerou Aram; Aram gerou Aminadab; Aminadab gerou Naasson; Naasson gerou Salmon; Salmon gerou, de Raab, Booz; Booz gerou, de Rute, Jobed; Jobed gerou Jessé; Jessé gerou o rei Davi. Davi, da mulher de Urias, gerou Salomão” (Evangelho de São Mateus 1:1-6)
Analisando-se bem o texto e, tendo em conta que um dos objetivos das genealogias era, como anteriormente apontado, comprovar a pureza dos ascendentes, isto é, limpa de qualquer sangue gentílico, esta genealogia de Jesus apresentada por Mateus tem nada menos o nome de quatro mulheres gentias: Tamar, Raabe, Rute e a mulher de Urias que, embora o texto não o mencione, se chamava Bete-Seba. Mas, se se estudar a vida destas mulheres, descobre-se que todas elas tiveram, em determinadas fases da sua vida, comportamentos considerados em nada ortodoxos:
- Tamar teve uma relação sexual com o seu sogro Judá (Genesis 38:13-15);
- Raabe era prostituta (Josué 2:1);
- Rute era moabita e deitou-se com Boaz numa eira (Rute 3:6-18);
- Bate-Seba, a mulher de Urias, era hitita e cometeu adultério com Davi (2 Samuel 11:2-5)
Se se tiver ainda em conta que nas genealogias israelitas muito raramente se citavam os nomes de mulheres, a não ser nos casos em que era necessário resolver alguma irregularidade, o que não era o caso da genealogia mateana, questiona-se porque, ao invés destas quatro mulheres gentias, não foram referidas outras mulheres assumidamente exemplares como, por exemplo, Sara ou Rebeca? Se se pensar que elas ali estão como um símbolo de uma humanidade contingente e imperfeita, a genealogia do Jesus revela-se, antes de mais, como símbolo da sua graça e amor revelados através da sua perfeita humanidade.
Diante de uma elite obcecada pelo ritualismo de pureza, da separação entre puros e impuros, esta genealogia revela-nos um Deus que não se inibe de operar no ordinário e profano, que não toma preferência alguma acerca daqueles que se assumem categoricamente como sendo corretos, puros de sangue ou mesmo como pertencentes a determinada etnia ou género. O Emanuel, o Deus connosco, está profundamente e intimamente mergulhado nas profundezas da nossa humanidade e assim estará connosco até à eternidade.
Vítor Rafael é investigador do Instituto de Cristianismo Contemporâneo, da Universidade Lusófona.