
“É ainda mais a exposição do mundo interior que habita cada pessoa e que é sempre um mistério para os outros, sobretudo quando se é uma criança.” Foto: Imagem do filme.
Hoje, escrevo sobre um filme belo de certa maneira, de quando ainda se telefonava numa cabine telefónica e as férias e divertimentos, apesar de tudo, eram mais vagarosos. Tão estranho aos ritmos de hoje. É um filme que vale a pena ver, mesmo se nos deixa pendurados a pensar naquela porta que vai e vem…
Uns vinte anos depois, Sophie (encantadora Frankie Corio), já adulta e mãe, vai rever e recordar aquelas magníficas férias que passou com o seu pai, Calum (inesquecível Paul Mescal), algures na Turquia, quando tinha 11 anos e registava tudo na sua câmara de filmar. Carregadas de nostalgia, talvez agora aquelas filmagens consigam fazer sentido e ajudá-la a compreender aquele pai, tão próximo e tão misterioso ao mesmo tempo, tão alegre e tão triste, que se despediu dela no aeroporto e que, provavelmente, ela não voltou a ver. Mas ficou a memória daquelas férias magníficas e ela vai voltar a esses dias, entrecortando as suas lembranças quase fantasmáticas com luzes e sombras numa discoteca, no presente. É assim a memória, feita de muitas imagens difusas e trémulas, e de outras tantas bem definidas (é muito interessante esse jogo da fotografia entre a nitidez e a desfocagem).
O que temos diante de nós são dois seres em crescimento, à procura de si mesmos: uma filha, Sophie, em transição da infância para a adolescência, não sendo já criança, mas não conseguindo ainda entender e entrar nas conversas e descobertas dos adolescentes mais velhos do que ela; e um pai, Calum, separado, mas que ainda diz à ex-mulher que a ama, que muitas vezes parece perdido, sem saber que rumo seguir (como sugerem os enquadramentos que fragmentam o corpo do personagem, escondendo-o nas sombras, nos espelhos, nas telas de TV ou nos limites da área enquadrada pela câmara e o final mantém em aberto).
Por isso, o filme – e creio que vem daí o seu encanto – é muito mais do que uma crónica de umas férias em que um pai e uma filha se entenderam e divertiram muito. É ainda mais a exposição do mundo interior que habita cada pessoa e que é sempre um mistério para os outros, sobretudo quando se é uma criança. Nem Sophie nem nós ficámos a saber quais são esses demónios interiores que habitam o seu pai (há um momento em que me lembrei de Virginia Wolf a entrar no mar…). Talvez seja isso que ela procura agora, atormentada por essas memórias (mais uma vez os flashes da discoteca): resolver os enigmas e encaixar as peças, “como se fosse um derradeiro encontro com o seu pai, que começamos a presumir desaparecido, entretanto”.
É realmente um filme de uma beleza estranha, quero dizer, que não se deixa apanhar à primeira. Apetece fazer muito silêncio depois de acabar um filme assim tão encantador, tão generoso, tão verdadeiro, que com tanta simplicidade e humildade põe diante de nós o tanto que há de insondável e indizível nos laços que nos tecem e constroem, no meio de tanta fragilidade e tantos erros.
Aftersun, de Charlotte Wells
Com Frankie Corio, Sally Messham, Paul Mescal e Celia Rowlson-Hall
Drama, 102 min, 2022, GB e EUA.
Manuel Mendes é padre católico e pároco de Esmoriz (Ovar). Este texto foi publicado originalmente na revista Mensageiro de Santo António.