
Artur Bual, 1974 Ano da Esperança, desenho. técnica mista sobre papel, 1973. Em Bual, a tela é como um poema, um repositório de paixão, entre a raiva e a ternura.
Está patente, até dia 8 de outubro, na Amadora, uma nova e aguardada exposição póstuma de Artur Bual. Intitulada Bual, a íntima partícula de um poeta, revela obras nunca expostas ou raramente vistas em público, num percurso pela vida de um dos expoentes da pintura gestualista e contemporânea.
Inserida no 44º aniversário do Município da Amadora, onde Artur Bual viveu a maior parte da sua vida, comissariada por Joaquim Franco e com a cumplicidade da família do pintor, esta exposição sonda, em cinco núcleos temáticos com a recriação do atelier, as mais discretas relações de Bual, pacíficas, tempestuosas, em conflito, por dentro e com os materiais que o trazem para fora, entre dúvidas e buscas partilhadas com amigos na demanda da alteridade que tanto o maravilhou e perturbou, justificando o núcleo “a inquietação do sagrado”. Sobre a relação de Bual com o sagrado, o padre Adelino Ascenso, amigo do pintor, escreveu um diálogo imaginado, que consta do catálogo da exposição e que o 7MARGENS reproduz a seguir. Há também contextos enigmáticos e surpreendentes, como um desenho de 31 de dezembro de 1973, intitulado “1974, o ano da esperança”, exercícios que anteciparam trabalhos emblemáticos, visões em binómio de grandes poetas portugueses ou obras feitas com os netos.
Em Bual, a tela é como um poema, um repositório de paixão, entre a raiva e a ternura. “Não há poeta sem movimento, nem pintor que não dê movimento às palavras que inquietam, fazendo poesia no derrame da tinta ou no rasto do carvão”, escreve Joaquim Franco na apresentação, um texto de que também se publica um excerto.
Dando-se quando se partilha, Bual liberta-se sem ficar totalmente livre e propõe caminhos que precisam de um olhar exigente, com tempo, quase contemplativo.
“Bual, a íntima partícula de um poeta”

Texto de Joaquim Franco
(…) Em cada sílaba vincada nas palavras de um poeta, ecoa, trémulo ou firme, um gesto em vibração, uma busca. O poeta é um artesão do movimento. Fixa-se, mas sai de si para (re)descobrir a perpétua substância que o move.
(…) A tela, como a estrutura de um poema, é um repositório de paixão, entre a raiva e a ternura, sondando aquele “redondo vocábulo, a soma agreste”1 em tempos de clausura.
A obra do pintor Bual lê-se como rima alternada, aquém e além do abstracionismo do gesto, mas também como quadra oposta na mistura química, surreal, em rosto definido ou em padrão impenetrável. Não é abstração, é projeção de uma certeza cromática. O acidente com o pincel, o acaso da tinta, ressoam como palavra anómala para enriquecer o poema, gota que se solta da onda para contemplar o inatingível.
Bual projeta-se teimosamente para se encontrar e, procurando encontrar-se, encontra-nos e atira-nos contra o tempo, como o vento. “O vento sopra contra”, nas palavras de Sophia, “contra as janelas”2, como a tinta contra uma tela. É “a vida num ápice, luminosa e frágil, para lá do poente”3, respirada e suada, tónica e brutal, mas também celeste bonança das brisas.
Pneuma, ruah, espírito. Um sopro para conjugar os astros desalinhando os planetas.
(…) Porque o pintor-poeta (…) não é uma ilha, como dizer um artista senão em relação, pacífica ou tempestuosa, em conflito consigo, por dentro, para dentro e com os materiais que o trazem para fora, na cumplicidade dos estão mais perto ou nas lonjuras que o interpelam.
O pintor oferece-se oferecendo. É no gerúndio que se revelam, como escarpas trabalhadas pela erosão, as vertentes reservadas e menos conhecidas de Artur Bual, entre tertúlias e silêncios no atelier. (…) Enriquecidos pela poética da tela, percorremos o (in)visível de Bual, o que o olhar não alcança no primeiro relance. Não chega vislumbrar, temos de absorver cada palavra revelada na dor e no clímax do gesto. Há por aqui tempo passado e história contada, mas também a premonição de um coração que sangra, uma luta. Azul-mar, intenção, Espanca e Pessoa, quente e frio. Túmulo, cruz e redenção. Cristo transfigurado, os deuses, um nada que é tudo. Incerteza e decisão. Sensualidade, natureza cruel, mulher e mãe. Música e silêncio. Afeto e revolta. Cor, traço, frente e verso. Suor e fogo no corpo. Eros, philia, agapé. O dom do amor, imanente, incondicional, de olhos vendados…
Um diálogo imaginário com Artur Bual

Texto de Adelino Ascenso
É já noite alta. Todos deixaram o atelier, nesta cave da rua de Santo António, pelo que ficámos sós. Foi um dia repleto de conversas e discussões com diferentes géneros de pessoas: uns que acorreram a este lugar para respirar a atmosfera ou para escutar as palavras do pintor; outros, simplesmente para repousar ou para observar os enérgicos movimentos de pincéis e trinchas lutando contra a tela, sangrenta arena da existência; alguns donos de galerias juntaram-se aqui para combinar exposições, comprar quadros ou encomendar outros. Mas também há alguns amigos que vêm e ficam porque se sentem envolvidos por uma idêntica onda espiritual. Ele continua a pintar, cigarro entre os dedos. O silêncio é quebrado apenas pelo som agressivo, fraterno e sensual da trincha em drama vivente contra a tela, numa busca espiritual pela essência de uma explosão formal. Ele coloca um CD de canto gregoriano. O atelier é a sua igreja; a pintura é a sua liturgia. Dialogamos, quase em surdina.
Arte como transmissão de autenticidade

Adelino Ascenso (AA): Quando pintas pareces lutar contra fantasmas, com agressividade, mas também com grande ternura; é como se estivesses a experimentar um drama aterrador e, simultaneamente, fascinante, o qual não podes e não queres evitar. Podes explicar por palavras o que significa para ti o ato de pintar?
Artur Bual (AB): Pintar é para mim uma luta, a luta da vida; é a minha forma de exprimir os meus sentimentos e libertar as minhas angústias. É o meu modo de transmitir uma mensagem. De facto, «a Arte é para mim um meio eficaz de comunicação, o ato libertador, significante e autêntico que encerra uma verdade alheia a preconceitos ou favores de todo e qualquer “ilustre” limitador do meu diálogo»4. Enquanto pinto, sou livre, porque não permaneço aqui, mesmo permanecendo; entro num inferno de sofrimento, dúvidas, perplexidades e confusões. O pincel é a minha lanterna, que me conduz a um mundo tenebroso e cativante, mundo de lamentos e carícias.
AA: Poderíamos dizer que os contrastes entre cores brilhantes e outras sombrias, lúgubres, que usas nas tuas pinturas, com gestos violentos e cheios de afeto, são uma imagem do mundo que sentes à tua volta?
AB: Sim e não. Este é o mundo que eu por vezes sinto à minha volta e o mundo que eu gostaria muito de sentir à minha volta. Um mundo que não é de uma beleza preparada, maquilhada, mas a beleza do genuíno da pessoa, que é simultaneamente violenta e terna; a beleza interior, a beleza do feio. Vivemos distraídos, buscando superficialidades, mas no nosso interior há sangue e raiva, compaixão e sede de amor. É neste sentido que a minha arte é anti-destino, uma luta contra a corrente, especialmente as pinturas abstratas, aquelas que eu reservo para «a minha exposição». Estou totalmente nessas pinturas da minha exposição, nessas abstrações, porque, para ser honesto, não posso obedecer a quaisquer regras que me venham do exterior. O artificialismo quebra como gelo; só a real autenticidade permanece. E a autenticidade é repleta de contrastes e contradições; é um permanente drama. A arte tem a missão de transmitir essa autenticidade, esse drama. Sem máscaras; sem condições.

Transcendência
AA: Olho para esse grande quadro ao teu lado e vejo um raio de luz muito ténue que aparece por detrás de uma massa de fealdade, densidade e escuridão. Isso tem a ver com o teu sentido de religiosidade e com o teu desejo de transcendência?
AB: Não sei explicar. Eu simplesmente pinto. Este quadro pertence à «minha exposição». Por isso, não me peças que explique. A pintura deve falar por si mesma. No entanto, posso dizer que «me vou transpondo na minha pintura, como insatisfação do humano, na busca do transcendente»5. Se o transmito ou não, não sei dizer; não posso analisar, pois «o meu espaço é mais visionário do que propriamente físico»6. É aquilo a que eu chamo «geometria do espírito», porque pinto para além do que é esperado e lógico ou logicamente esperado. Quase um género de saudável loucura, como dizia Fernando Pessoa:
Minha loucura outros que me a tomem
Com o que nela ia.
Sem a loucura que é o homem
Mais que a besta sadia,
Cadáver adiado que procria?7
AA: Vives o drama da vida, da busca, e a tela é a tua «arena dramática» dessa saudável loucura…
AB: Sim, mas não só a tela é a minha «arena dramática». Eu experimento o mesmo drama quando estamos a beber um copo ou a comer a omelete preparada pela Guilhermina, quando estou a fumar e quando falamos. A arena é a existência do buscador. Por isso, sinto o impulso para pintar mesmo em restaurantes, usando o carvão e acrescentando vinho e café, para comemorar aquele momento que não pode repetir-se; não posso prescindir de tal drama. Pintar é a minha liturgia.
Cristo, o poeta

AA: Na noite passada, quando pernoitei no teu atelier, não pude dormir. Acendi a luz e olhei para a pintura de um «Cristo» inacabado que estava encostado à parede e que parecia observar-me com inquieta serenidade. Que pensas sobre Jesus Cristo?
AB: Jesus Cristo foi um dos grandes poetas, o primeiro poeta, aquele que deu e ainda dá. Estou sempre disposto a pintá-lo. Quem sabe se não o pinto como alguém que faz um autorretrato? Talvez ele seja o modelo de pessoa que eu gostaria de ser. «“Cristos” ou “Crucificações» são símbolos de humanidade e despojamento, de torturas e amor, na aventura da existência»8. É esta ansiosa serenidade que quero experimentar e transmitir, nunca a separando da emoção que a motiva.
AA: E a emoção que motiva essa ansiosa serenidade está em íntima relação com a tragédia do nosso mundo contemporâneo.
AB: Com o mundo contemporâneo que tenta agarrar alguns raios de amor, uma palavra cujo significado não é compreendido por muitas pessoas. O amor é redondo. E é onde ele existe que temos o direito de lutar; não havendo amor, a luta torna-se sinal de repulsa e ódio. Costuma dizer-se que «amigo não empata amigo». Considero este slogan repugnante. De facto, o amigo é aquele que tem o direito a empatar o amigo. Se existe amizade, existirá a perturbação. Jesus nem sempre foi o que nós denominaríamos uma pessoa simpática. O nosso mundo contemporâneo parece ignorar isto. Cristo perturba porque é amigo e poeta.
Adelino Ascenso é padre católico e membro da Sociedade Missionária da Boa Nova, onde agora desempenha o cargo de provincial.
Bual, A Íntima Partícula de um Poeta
Galeria Municipal Artur Bual – Casa Aprígio Gomes (Amadora)
Aberta ao público até 8 de outubro
De terça a sábado, das 10h às 13h e das 14h às 18h. Aos domingos das 14h às 18h.
Notas:
1 – Afonso, José. 1973. Redondo vocábulo. In Venham mais cinco. Orfeu.
2 – Andresen, Sophia de Mello Breyner. 2013 (1950). O vento. In Coral, p. 37. Assírio e Alvim.
3 – Franco, Joaquim. 2015. Unicamente o vento. In Com franqueza…, p. 98. Paulinas.
4 – (A. BUAL, 1994). In AA.VV, Bual, Extractos da Obra, p. 171.
5 – E. ÁLVARO, “Arte Anti-Destino”, in AA.VY, Bual, Extractos da Obra, p. 24.
6 – Ibidem, p. 24.
7 – F. PESSOA, Mensagem.
8 – AA.VV, Bual, Extractos da Obra, p. 25.