Um estranho paradoxo

| 18 Mai 20

À memória de João Gomes,
discípulo do Cardeal Cardijn e dirigente da JOC

Vivemos um estranho paradoxo. As pandemias tenderão a ser controladas pela ciência. Mas tal não tem acontecido no caso da covid-19. O certo é que tem faltado uma liderança ética e política partilhada nos planos europeu e mundial. A voz do Papa Francisco, as encíclicas Laudato Si’ e Caritas in Veritate são ainda ecos que clamam no deserto. A xenofobia, o isolacionismo e a desconfiança são traços dominantes no sistema internacional. Mas será esta pandemia uma oportunidade para se criar uma nova consciência capaz de 1) Prevenir ameaças globais; 2) Garantir uma melhor partilha de recursos; 3) Compreender que os mais fracos são as maiores vítimas; 4) Pôr em prática um contrato ecológico; 5) Ligar sustentabilidade, equidade e justiça distributiva na sociedade e entre as diferentes gerações, bem como garantir a subsidiariedade?

O Papa lançou o desafio para se debater em 2020, em Assis, “A Economia de Francisco”. A reflexão ficou para o final do ano, em virtude do confinamento, mas tem de estar presente aqui e agora. Construir uma nova economia à medida do homem – eis o que importa. O objetivo é que tenhamos no mundo uma economia socialmente justa, viável, ambientalmente sustentável e eticamente responsável. Como tem afirmado o Papa Francisco: “Não há razão para ter tanta miséria, precisamos construir novos caminhos.” Efetivamente, não faltam, em abstrato, recursos nem dinheiro, o que há é falta de justiça e de partilha. Hoje, um por cento da população mundial detém mais riqueza do que os restantes 99%. O planeta produz alimentos suficientes para 11 mil milhões de pessoas. Ora, sendo a população mundial de 7,6 mil milhões, importa encontrar soluções de maior justiça distributiva. De facto, 851 milhões passam fome, diz a FAO, e isso é intolerável. Se não há escassez de recursos nem de dinheiro, o Papa Francisco insiste, com especial ênfase, nesta tremenda contradição. No simpósio recente sobre “Novas formas de fraternidade solidária, da inclusão, integração e inovação” afirmou: “Um mundo rico e uma economia vibrante podem e devem acabar com a pobreza!” Dir-se-á que a pandemia veio alterar as coisas. Temos de responder que as situações dramáticas com que nos debatemos devem-se à acumulação de erros e ao facto de continuar a haver desatenção relativamente aos temas da desigualdade e do desenvolvimento humano.

Se há lições que hoje temos de tirar, elas obrigam a ligar saúde pública, economia, justiça e combate à pobreza. Há dilemas? Certamente que sim. Daí que a crise que se anuncia e a sua expressão dramática terão de ser alvo de uma ação corajosa em vários tabuleiros. Esta não é mais uma crise, igual às outras. Uma crise global obriga a uma resposta global, uma situação excecional obriga a medidas excecionais. A crise financeira de 2008 foi diferente e ainda não foi totalmente debelada. Agora não é só o sistema financeiro a estar em causa, é toda a economia. E se a pandemia corresponde à urgência maior, a destruição ambiental e as ameaças inerentes ao aquecimento global e ao consumismo destrutivo obrigam a que a dimensão ecológica entre na ordem do dia como prioridade de todos. Eis por que razão o desafio lançado pelo Papa para uma reflexão séria sobre a “Economia de Francisco” exige um empenhamento de todos – jovens e menos jovens, economistas, financeiros, políticos, decisores, académicos, demógrafos, cientistas, técnicos, médicos, biólogos, imunologistas, filósofos, sociólogos… Mariana Mazzucato acaba de nos alertar para o facto de o papel do Estado e dos governos ter de ser repensado: “mais do que se limitarem a corrigir as falhas de mercado, deveriam procurar, de forma ativa, criar e desenvolver mercados que garantam um crescimento sustentável para todos”.

Temos de entender o que o Papa S. Paulo VI nos disse na encíclica Populorum Progressio – o desenvolvimento é o novo nome da paz e devemos contar com o mercado tanto quanto possível e com o Estado tanto quanto necessário – em nome da eminente dignidade da pessoa humana. “De facto, não basta distribuir dinheiro às empresas: é, antes, imperativo impor condições para garantir que os planos de resgate financeiro têm capacidade para transformar os setores que necessitam de ajuda e permitir-lhes desempenhar um novo papel numa nova economia – uma economia centrada na estratégia do New Deal Ecológico, que consiste em reduzir as emissões de carbono e, ao mesmo tempo, investir na formação dos trabalhadores, assegurando que estes se adaptam às novas tecnologias”… Lembramos o que disse o Cardeal Cardijn, fundador da Juventude Operária Católica (JOC), conselheiro do Papa S. João XXIII na redação da encíclica Mater et Magistra: “o método “ver-julgar-agir” é essencial para discernir prioridades pastorais e afirmar a presença de Cristo, caminho, verdade e vida, na nossa existência. Significa olhar ao redor para a realidade social, chegar a conclusões sobre o que o Evangelho tem a dizer sobre isso e colocar essas conclusões em prática.”

 

Guilherme d’Oliveira Martins é administrador executivo da Fundação Calouste Gulbenkian

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