
O Festival de Poesia Voix Vives conta com uma feira do livro, debates, eventos teatrais e outras iniciativas. Foto © VoixVives Toledo.
Iniciou-se nesta sexta-feira e decorre até domingo (2 a 4 de setembro), em Toledo (Espanha) o “Voix Vives – Festival de Poesía de Mediterráneo en Mediterráneo”. Seria a décima edição, não tivesse a pandemia interrompido a regularidade desta iniciativa, que tem como polos a cidade espanhola e Sète, no sul de França. Neste ano, o Festival presta homenagem a Ángel Guinda, importante poeta espanhol recentemente falecido.
No texto de apresentação deste nono encontro, Alícia Martínez Juan, diretora do festival, justifica a persistência deste momento cultural partindo de uma frase do poeta português Ruy Ventura, que representa o nosso país na cidade onde viveu e pintou El Greco: “Há frases que é preciso retomar para que o ferro não vença o crescimento da árvore.” A responsável pela organização explica: “Sucedeu algo em 2020 que interrompeu a vida. Uma pandemia mundial que serviu como pretexto para travar o nascimento imparável de comunidades que respondiam com uma só voz à devastação do nosso planeta, para alargar até limites insuspeitados a fenda que nos separa, com mais guerras, mais fome, mais pilhagem de recursos. Naquele parêntesis, a vergonha instalou-se a viver entre nós, a violência e o ódio abriram a porta de todas as nossas casas. Os lobos aprenderam a nossa linguagem.”
O festival defende, segundo afirma a responsável, o papel transformador da poesia, de um “inócuo encontro de poetas que cantam para o povo, com o povo e no povo”, buscando “esperanças, caminhos, redes que nos ajudem realmente a mudar [o mundo]” e desejando que, “ao falarmos do seu poder de transformação social não usemos palavras ocas”.
“É uma honra representar Portugal e a língua portuguesa num evento que encara a poesia como uma força transformadora, sobretudo na ocasião em que se presta homenagem a um poeta com a qualidade de Ángel Guinda, com quem tive o gosto de conviver em Lisboa”, diz Ruy Ventura ao 7MARGENS a propósito da sua participação neste festival. O convite, explica, surgiu no decurso de mais de duas décadas de relação entre o autor e alguns nomes importantes da poesia de língua castelhana, que deram origem à tradução de alguns livros seus, mas também à sua atividade como tradutor e como diretor da “Devir – Revista Ibero-Americana de Cultura” (de que saiu há pouco o oitavo número).
“A celebração da poesia, feita com dignidade e exigência, é capaz de oferecer aos cidadãos, sobretudo aos desprevenidos, uma palavra que pode incomodá-los e questioná-los, abrindo caminhos de libertação consequente”, diz Ruy Ventura. Vale a pena insistir e propor alternativas viáveis aos simulacros conformistas, inclusive literários e artísticos, que tentam alienar-nos com a mais sedutora propaganda, para que o acontecimento poético, a dádiva e a dignidade humana se diluam em benefício da exploração, do consumo e do lucro. Se um dos nomes de Deus é Poesia, como intuiu Sebastião da Gama, o poema deve ser encarado não só como artefacto verbal e sismógrafo, mas sobretudo como antídoto espiritual e social neste tempo indecente…”
Neste ano, além de Ruy Ventura, em representação de Portugal, estarão presentes os poetas espanhóis Ángel Calle, Lola Nieto, Maria Ángel Pérez López, Isaac Alonso Araque, Luis Luna, Olaia Pazos, Núria Gómez de la Cal e Tirso Priscilo Vallecillos. O Chile estará representado por Patricio Sánches e o México por Mercedes Luna Fuentes. De França marcará presença Nathalie Quintane e do Iraque virá Bahira Abdulatif.
Além de encontros e leituras, individuais ou partilhadas, com os poetas presentes, realizados em locais emblemáticos de Toledo, o Festival Voix Vives conta ainda com uma feira do livro, debates, eventos teatrais e outras iniciativas. Será ainda lançada uma antologia com poemas dos autores presentes, traduzidos para castelhano.
O Festival conta com o patrocínio do Ministério da Cultura de Espanha, da Junta Autonómica de Castilla y León, do Ayuntamiento e da Deputación de Toledo, da Universidad de Castilla-La Mancha e de outras entidades espanholas. É ainda patrocinado pelo Institut Français e pelo Ministério da Europa e dos Negócios Estrangeiros de França.

De Ruy Ventura, serão apresentados estes três textos no festival:
Louvada seja a mão que me bate em silêncio, o braço que me empurra e me derruba e, na queda, me abre os olhos, quebrando o vidro fosco que afastava da vista a lama e o monturo. Louvada seja essa mão. Louvado seja o braço que dá clareza aos gestos e me devolve a voz, o vento e o fogo, mostrando sobre a mesa todo o esterco que precisa de limpeza. Poderei no entanto ver, se me faltam lentes e não há palavras que curem a miopia? A quilha vai batendo na rocha. Abre um rombo no casco e o navio, talvez apenas bote ou jangada, desce às profundezas, caindo sobre o lodaçal. Náufrago de mim mesmo, sinto os ossos quebrados, mas não morro de afogamento. Sou portanto um pedaço de madeira, cuspido até às margens poluídas, sem ter quem me apanhe – e comigo faça lume ou me deixe apodrecer.
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O petróleo nega a estrada e a embarcação. O plástico flutua e envenena as águas, sem chegar a ser fogo além daquele que ulcera o estômago e gangrena as almas. É difícil preencher o vazio – sem luz, sem uma lâmpada. Os olhos são ferida sem sangue, cicatrizes sem carne entre a pólvora da viagem. Vê-se o governo do mundo. Nada nos alimenta a não ser um simulacro, sem limites. Respiramos entre partículas de lixo. Enganamos a fome, bebendo ciência – como se tivéssemos o ceptro de Saturno. Temos no entanto as mãos vazias. E sobre elas um combustível, pairando – que a prospecção é uma esperança derruída, poeira ou força inerme sem fogo nem incandescência.
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[palavras apócrifas de Frei Luis de León]
… como ia dizendo – não esquecerei a ameaça das chamas, a tortura, os grilhões. O hábito perpétuo. Há todavia frases que é preciso retomar para que o ferro não vença o crescimento da árvore. São assim as vitórias que inscrevemos a sangue na pedra das fachadas – não memórias de um vencimento, mas espelhos que nos livram da morte incerta, devolvendo o assombro criado à sombra da derrota.