
A réplica da nave da viagem à Lua de Tintin, nos jardins da Gulbenkian, em Lisboa. Foto © Miguel Marujo.
A exposição Hergé, que está patente na Fundação Calouste Gulbenkian, tem merecido a atenção de um público numeroso de várias gerações, atraído pela criatividade do fundador da escola da “linha clara”, pela lembrança das aventuras que povoaram a nossa infância e pelos mais jovens, animados pela versatilidade, pela cor, pelo movimento e pela imaginação. Se houve quem quisesse invocar sobretudo as características de outro tempo e as referências ultrapassadas na mentalidade e nas recordações (Tintin au Congo), a verdade é que só o desconhecimento da evolução das aventuras do jovem repórter Tintin pôde ficar-se por estereótipos ultrapassados, incapazes de compreender a evolução da obra. Puro engano.
Apesar das vicissitudes da vida do autor e da sua vida atribulada num país em guerra, o certo é que como muitos autores absolutamente insuspeitos, como Jean Luc Marion ou Michel Serres, consideraram Hergé como um dos autores que mais influenciaram a moderna Banda Desenhada, no sentido de a tornar uma Arte maior, ao lado de outras Artes e da sua dinâmica, numa encruzilhada da literatura, da ilustração, das artes plásticas, do cinema e da expressão digital. Já no domínio político e da defesa das liberdades e da democracia O Ceptro de Otokar, saído a lume nas vésperas da Segunda Guerra e no tempo perigoso da ascensão das ditaduras, é uma referência essencial de denúncia do terror que dava passos inquietantes, ou não fora o inimigo, nas aventuras passadas no pequeno país imaginário da Sildávia, um militar sinistro chamado Musstler, cujo nome ligava as mais sinistras referências do nazi-fascismo. E, num mundo que antecipava a generalização das viagens ao encontro de outras culturas, Tintin irá simbolizar ainda um novo tempo histórico e um novo espírito.
As primeiras referências, algo ingénuas (como o País dos Sovietes), irão tornar-se esteio de uma evolução exigente que influenciará decisivamente a Banda Desenhada, ou as histórias de quadradinhos (E. P. Jacobs, Schuiten, Enki Bilal…), como verdadeira Arte, simbolizando a modernidade. Se nos lembrarmos como a cultura pop marcou a expressão criativa das correntes artísticas do século XX e do século XXI a evidência fica claramente demonstrada com Hergé. A presença da tela de Andy Warhol na exposição e a curiosidade de Hergé pela arte contemporânea são evidentes e demonstram como a BD reúne e articula diversas formas de criação: a imagem que recorda o cinema e as suas técnicas, a literatura realizada através de uma ligação entre a ficção e a realidade – como prazer puro – o realismo e o surrealismo estão presentes e o diálogo entre o Oriente e o Ocidente é bem demonstrado em O Lótus Azul, obra genial continuada em Tintin no Tibete, através do sublime elogio da amizade, do respeito mútuo e do espírito de aventura.
Mas cabe ainda recordar duas pessoas, a merecerem a nossa atenção – o padre Abel Varzim e Adolfo Simões Müller. O padre Abel Varzim, heroico defensor da liberdade e da justiça social, quando frequentava a Universidade de Lovaina nos anos trinta, teve a intuição de compreender as virtualidades de um novo autor e de uma nova Arte, que já tinha cultores pioneiros entre nós, como Cottinelli Telmo, Emmérico Nunes, Júlio Resende ou Carlos Botelho. Adolfo Simões Müller, jornalista, pedagogo e escritor, foi quem acolheu e celebrizou Tintin, a partir de 1936 em O Papagaio.
Numa palavra, Hergé permite vermos o nascimento de um novo modo de pôr em contacto culturas, artes, experiências num mundo em mudança, em que passado e futuro se encontram… Um foguetão e um complexo telescópio juntam-se à colaboração singular entre Tintin e seu amigo Tchang… E assim se fazem a vida e o futuro.
Guilherme d’Oliveira Martins é administrador executivo da Fundação Calouste Gulbenkian
Hergé
Exposição na Fundação Calouste Gulbenkian
Até 10 de janeiro de 2022
Segunda, Quarta, Quinta e Domingo, 10h-18h
Sexta e sábado, 10h-21h
Encerra à terça-feira