
“A artista abre o filme declarando que não teria sobrevivido até aos dias de hoje, não fossem os seus amigos. Toda a sua obra é uma imensa homenagem às pessoas que compuseram essa comunidade multiforme e vital na vida de Goldin.” Foto: Trailer do documentário Toda a Beleza e a Carnificina.
Já não ia ao cinema há muito e, inesperadamente, o filme falou-me de um certo homem, Lázaro, e de duas irmãs, Maria e Marta.
Toda a Beleza e a Carnificina é um documentário de 2022 da realizadora Laura Poitras, que nos leva a percorrer vários períodos da vida e obra da fotógrafa Nan Goldin (1953).
A par desse percurso, vamos também acompanhando o seu ativismo em defesa das vítimas da crise dos opiáceos e a luta incansável pela responsabilização moral e criminal da família Sackler, detentora da farmacêutica que produziu e promoveu a venda massiva de um opiáceo altamente viciante, sob a falsa premissa de este não causar dependência.
A artista abre o filme declarando que não teria sobrevivido até aos dias de hoje, não fossem os seus amigos. Toda a sua obra é uma imensa homenagem às pessoas que compuseram essa comunidade multiforme e vital na vida de Goldin.
Em 1989, inaugura-se a primeira exposição com a curadoria de Nan Goldin, uma mostra que a artista concebeu enquanto denúncia à epidemia de sida e ao modo como alguns políticos e autoridades religiosas bloqueavam as medidas de prevenção da infeção e de destigmatização das pessoas infetadas e doentes.
A sua comunidade estava a morrer.
Ali também se vela, se sofre, se revolvem as entranhas com a injustiça, escrevem-se cartas iradas, chora-se muito.
Nas manifestações dos afetados pela crise dos opiáceos, em que Goldin participa, contam-se as histórias das vidas que se perderam, vítimas da ganância sem fim.
Descobrem-se novos amigos, em laços feitos de perda e de uma esperança inquebrantável de que a justiça vem, mesmo que se demore, e a violência do mundo pareça levar a melhor. Lutam para que o nome Sackler deixe de estar associado à filantropia e para que o seu sofrimento possa ser reconhecido, dando prioridade às vítimas. Encenam die-ins nos museus, uma ação de protesto que procura chamar a atenção para as centenas de milhares de mortos, em resultado do opiáceo.
A propósito da morte de Lázaro, Debie Thomas sugere-nos que, ouvindo um Jesus que chora a morte do seu amigo, nos indaguemos sobre o poder transformador do nosso lamento e pesar.
Pode a força da mágoa levar-nos à justiça?
No caso dos companheiros de travessia de Nan, houve consequências para o seu lamento; não no plano dos tribunais, mas Nan e os companheiros comemoram a sua vitória quando vários museus deixam de exibir o nome da família Sackler nas suas galerias e se recusam a que esta os financie.
O trabalho de Nan Goldin é também uma reflexão sobre pertença e família, encontrando sustento no amor que cuida até ao fim, em amigos que se aconchegam como podem e ex-amantes que voltam para cuidar dos moribundos, marcando presença nas despedidas.
A fotografia de Goldin vai procurando registar a verdade, uma verdade feita da vida que se dá pelos amigos.
A história da artista é ainda a história de duas irmãs que se tiveram de separar demasiado cedo, mas cujo diálogo continua, tecido a memórias, algumas fotografias, pedaços de textos e poemas. Uma conversa em que Nan procura a irmã na sua própria história e esta, tendo vivido tão pouco, não consegue deixar-se morrer; é como se respondesse a um chamamento.
“Creio que Deus pode e trará de volta à vida tudo o que está morto, enterrado, esquecido e fervilhando dentro de nós: feridas antigas, corações endurecidos, dependências obstinadas, medos ferozes. Acredito que Deus está sempre e em toda parte empenhado em nos tornar mais plena e abundantemente vivos — vivos para amar, vivos para esperar, vivos uns para os outros, vivos para a Criação.” (Debie Thomas)
Mistérios do amor.
Toda a Beleza e a Carnificina
Título original: All the Beauty and the Bloodshed
Documentário, 122 min
EUA, 2022
M/14
Sara Leão é mediadora educativa e formadora de Português Língua Estrangeira.