Foi lançado pelas Edições Universitárias Lusófonas mais um livro da autoria de José Brissos-Lino, A Teologia de Jesus. Esta obra, publicada em setembro de 2021 com um título bem ousado e original, pretende marcar certamente um novo marco nas linhas de investigação em torno do pensamento teológico de Jesus. Um dos grandes eruditos de história do cristianismo, Jaroslav Pelicano, professor emérito de história na Universidade de Yale, escrevia num dos seus livros que “independentemente do que alguém possa pessoalmente pensar ou acreditar nele, Jesus de Nazaré tem sido a figura dominante na história da cultura ocidental em quase vinte séculos. Se fosse possível, com algum tipo de poderoso íman, puxar para fora dessa história cada pedaço de metal com pelo menos um vestígio do seu nome, quanto sobraria? É que é desde o seu nascimento que a maioria das pessoas data os seus calendários, que no seu nome milhões amaldiçoam e no seu nome que milhões rezam.”
Num universo de pouco mais de dois mil milhões de pessoas que se afirmam hoje em dia como sendo cristãs, é também manifesta a grande diversidade de doutrinas e de práticas existentes entre as várias divisões existentes no seio do cristianismo. Mas, ao longo destes dois mil anos, sabendo-se que o próprio Jesus nada deixou de escrito, foram-se acumulando sucessivas camadas de doutrinas, dogmas e ritos que por vezes foram descaraterizando os principais ensinamentos do mestre. Ainda que Jesus, ao longo do seu curto ministério, não tenha fundado uma escola rabínica à parte das duas principais e existentes no seu tempo, a de Shammai e de Hilel, poderemos apreender muito dos seus ensinos e pensamento ao longo das únicas fontes credíveis que temos disponíveis hoje em dia, os quatro evangelhos. Definindo-se teologia como sendo um discurso ou pronunciamento acerca de Deus, o que podemos inferir dos ensinamentos e discursos de Jesus acerca daquilo que ele mesmo pensava do seu próprio pai, como ele assim o referia muitas vezes? Qual era afinal a sua teologia?
Ao longo dos oitos capítulos que compõem o livro, e com base em inquérito efetuado aos discursos e às “frases soltas” de Jesus constantes nos quatro Evangelhos, o autor analisa magistralmente a doutrina, a ética e a espiritualidade de Jesus. No capítulo sétimo, em jeito de sumário, discorre acerca dos equilíbrios necessários em matéria doutrinária contra certos exageros hermenêuticos praticados por muitas das instituições religiosas na atualidade. Afinal, como e muito bem afirma o autor, “a verdade, por muito crua ou pertinente que seja, não pode extinguir o amor que devemos uns aos outros”.
Pode afirmar-se que, em matéria de doutrina, não há perigo maior ou mais subtil do que enfatizar em demasia determinadas declarações das Escrituras. Jesus, numa das suas frases mais revolucionárias e a despeito de certas leis mosaicas, enfatizava sempre a primazia da misericórdia sobre estas: “O sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado” (Marcos 2:27); “Se tivésseis sabido que quero misericórdia em vez de sacrifício, não teríeis condenado os inocentes.” (Mateus 12:7). O próprio apóstolo Paulo na sua epístola aos Romanos deixa igualmente a seguinte observância “A ninguém nada devais, a não ser o amar-vos uns aos outros. Pois quem ama o próximo cumpre plenamente a lei.” (Romanos 13:8). Por isso mesmo, o amor deve em tudo prevalecer na nossa práxis, tal como Agostinho recomendava na sua célebre frase Dilige et quod vis fac, ou seja, ama e faz o que quiseres.
Bandeiras ao lado do Mestre

Rembrandt, O Regresso do Filho Pródigo: “A ênfase de Jesus centra-se na fé, perdão, misericórdia e compaixão.”
Conforme aponta o autor deste A Teologia de Jesus, muitas das inúmeras bandeiras teológicas e doutrinais levantadas nestes últimos tempos passam efetivamente ao lado do ensino e discurso do Mestre. A ética sexual tem sido talvez um dos pontos mais debatidos nestes últimos tempos. Questões como a homossexualidade, a prostituição, o sexo pré-matrimonial, os métodos contracetivos, o aborto e o divórcio, são todos temas aos quais Jesus dá pouca ou nenhuma relevância, não querendo com isso dizer que os aprovasse.
Noutras questões que têm a ver com a Eclesiologia e Liturgia, Jesus também não deixou quaisquer instruções acerca de modelos de organização da Igreja e até do ofício religioso. Podemos, no entanto, observar no livro dos Atos dos Apóstolos que o evangelista Lucas dá uma ênfase especial ao notável grau de comunhão e partilha que marcou o movimento inicial de Jesus. Dedicavam-se à comunhão e ao partir do pão, abriam as suas casas uns aos outros, comiam juntos e contribuíram com dinheiro e bens para os apóstolos distribuírem entre os mais necessitados.
Finalmente, e citando o autor, “ao ensaiar um simples exercício de confronto entre as matérias fundamentais observadas no discurso do Mestre Jesus e as ênfases utilizadas atualmente como bandeiras doutrinárias por alguns círculos cristãos, é por demais evidente que dificilmente se conjugam”. Das conclusões a que se chegou, será o facto de nos discursos e frases soltas de Jesus, as questões morais não terem muita relevância, a não ser, como observa o autor, as de caráter (a pureza e a hipocrisia). Tendo em conta que Jesus manteve silêncio acerca das imensas questões éticas e morais com que nos confrontamos nos dias de hoje, necessitaríamos de muita humildade para perceber que nenhum ser humano tem todas as respostas para todas essas questões. Além das grandes virtudes como a misericórdia, o perdão e o amor, a tolerância é certamente uma virtude chave para Jesus, e nós, os cristãos, deveríamos sempre recordar-nos acerca da relevância destas virtudes. Afinal como afirma o autor, e muito bem, “A ênfase mais visível, se assim podemos dizer, é de pendor espiritual e centra-se essencialmente no estilo de vida (fé, perdão, diaconia, riqueza e pobreza), mas também na prática da caridade ou solidariedade cristã (misericórdia/compaixão)”.
Necessitaríamos de nos libertar de quase dois mil anos da muita dogmática, doutrinas e ortodoxia que em muito obscurecem ou confundem a mensagem e ação de Jesus: “seria não apenas desejável, mas urgente voltar às bases. Voltar à pureza do evangelho de Jesus Cristo naquilo que é a sua essência e a uma vivência genuinamente cristã. Precisamos, sobretudo, duma teologia que escuta”, afirma o autor.
Jesus, tal como no início, afinal andará por aí, caminhando sobretudo nas margens da nossa sociedade, junto dos mais fracos, desfavorecidos e marginalizados, falando acerca do Reino. Seria essa a elementar e simples teologia de Jesus a que deveríamos almejar. Esta obra é certamente um dos mais importantes trabalhos feitos até ao momento, fornecendo assim aos alunos, investigadores e demais interessados em Teologia uma ferramenta imprescindível para estudos mais aprofundados acerca da teologia de Jesus.
A Teologia de Jesus – Tudo o que o Mestre falou, de José Brissos-Lino
Edições Universitárias Lusófonas
Prefácio de Viriato Soromenho Marques; 102 pág.s
Vítor Rafael é investigador do Instituto de Cristianismo Contemporâneo, da Universidade Lusófona