Nas margens da Filosofia (XXIX)
Um dos aspectos positivos (se é que os há) desta pandemia é o facto de termos tempo para ler, escrever e pensar sem o stress habitual. E um dos livros que mais apreciei enquanto confinada foi A Resistência Íntima. Ensaio de uma filosofia da proximidade, de Josep Maria Esquirol.[1]
No prefácio que escreveu para esta obra, José Tolentino Mendonça classifica-a como “um livro que morde”, recorrendo ao vocabulário kafkiano. Na verdade, Esquirol interpela-nos de um modo simultaneamente próximo e distante. Próximo porque parte de uma situação da qual todos somos filhos – as marcas deixadas pelo niilismo nitzscheano no tecido da filosofia. Distante porque a sua compreensão exige o domínio de muitos autores que, de Heráclito a Patochka, são invocados como parceiros de diálogo, ajudando-nos no regresso à “Casa do Ser” na tentativa de recuperar a simplicidade da vida.
Numa obra de iniciação ao estudo da filosofia, Ortega y Gassett referiu-se à clareza como sendo a cortesia dos filósofos.[2] Não podemos dizer que Esquirol neste seu livro seja cortês. Mas é sem dúvida generoso por nos considerar parceiros de um diálogo onde a filosofia é reorientada para caminhos de resistência, desembocando no território do que é íntimo e próximo de nós. Numa palavra, que reaproxima a filosofia da vida, dando-lhe um sentido e combatendo o desespero.
A Resistência Íntima estrutura-se em três momentos, a partir dos quais se organizam, com peso desigual, dez capítulos. Entramos nele por meio de referências familiares – o prato na mesa, o azeite, o pão, o cozido, o cuidado – imediatamente contrastados com o cenário niilista que ocupa todo o primeiro momento desta obra. Nela somos convidados à proximidade que anula a solidão; à assunção de que viver é resistir; ao desafio de superar uma realidade que se nos opõe; à tentativa de ultrapassar a ameaça de desintegração, provocada pelo meio circundante e por nós próprios.
O tema da resistência é encarado na sua dimensão política e existencial, como luta em prol de algo em que se acredita e que nos leva a combater, usando as armas da memória, da imaginação e do sonho. A ele se contrapõe uma filosofia da proximidade, mergulhada na vida, no quotidiano, nos outros e na tentativa “de compreensão do pano de fundo da existência humana.” (p.19).
J.M. Esquirol fala-nos de resistência como sendo o traçar de um mapa, sustentando que “enquanto mapeamos há uma parte do terreno que vai desaparecendo.” (p. 23). Daí a pertinência de uma revisitação do niilismo nietzscheano, esse processo que permitiu ao filósofo alemão experimentar uma total desintegração, constituindo-se como primeiro degrau para a compreensão da civilização ocidental. Note-se que esta proposta não convence Esquirol, que a ela contrapõe uma filosofia da proximidade.
Os sentimentos de angústia, de insónia e de noite são revisitados pela mão de diferentes filósofos e teólogos, todos eles incapazes de encontrar “o suporte que sustenta a lábil vida.” (p. 33). Urge regressar à origem, ao caminho que nos permita clarificar o mistério da existência. E o segundo momento é-nos introduzido pela mão de Voltaire, na figura de Cândido a cultivar o seu jardim. Este é o limiar apresentado, de um modo introdutório, a um regresso a casa, ao elogio do quotidiano, ao cuidado de nós próprios e dos outros, à demarcação da actualidade.
Para Esquirol, o jardim e a casa representam uma resposta possível à desagregação niilista com que Nietzsche nos ameaça. A casa protege e favorece a intimidade, permite o segredo existencial que alimenta e orienta, faculta a hospitalidade e o gesto de acolhimento. O autor encara a casa como substituto de uma metafísica da substância pois ela é um lugar de abrigo e de cuidado. E compara-a aos braços de uma mãe, ao primeiro berço que nos envolve e acolhe, ao lugar onde se desenrola a nossa vida – o capítulo quarto deste livro tem precisamente como título: “Elogio da quotidianidade: quão simples que é a vida.”
Imaginando uma conversa entre um ser humano e uma criatura angélica, J.M.E. sustenta que esta seria particularmente tocada se lhe falássemos da simplicidade da nossa vida. E convida-nos a recusar o extraordinário e a aceitar os aspectos positivos da repetição e da rotina, valorizando a proximidade. Com esta atitude demarca-se de Heidegger, para quem a quotidianidade é sinal de mediania. A assunção da nossa existência mergulha no assumir do quotidiano e alimenta-se com a proximidade das coisas e dos outros, através do cuidado: “acompanhar e cuidar são expressões da proximidade.” (p. 58) Não podemos, no entanto, esquecer que na Carta sobre o Humanismo Heráclito é apresentado na banalidade quotidiana de alguém que se aquece junto ao forno.
De igual modo, Hannah Arendt é revisitada ao apresentar-nos a necessidade do trabalho, embora a importância dos gestos quotidianos seja por ela esquecida. Contudo, segundo Esquirol, é a concretude que nos torna próximos do mundo e nos permite compreendê-lo através “das mãos que pegam e tocam; dos odores que sentimos e das cores que vemos.” (p. 61). Daí o elogio da articulação entre contemplação e trabalho, à maneira das ordens monásticas e das profissões humildes, entendidas como “ofícios sábios, da sabedoria do gesto moldado pela passagem dos dias” (p. 63). O senso comum e a linguagem corrente não se identificam com a banalidade pois são elementos constitutivos da criação. E Franz Rosenzweig é chamado à pedra para um regresso à vida e às exigências do quotidiano – “voltar ao dia à dia é voltar à vida” (p.66). Uma atitude que nos reorienta para a valorização do cuidado.
O médico e o enfermeiro ocupam um lugar central no capítulo quinto, intitulado “Breve Meditação Médica.” Esquirol recorda as personagens do Dr. Rieux, n’A Peste de Camus e de Gerasim, o humilde criado que faz as vezes de enfermeiro no romance de Tolstoi A Morte de Ivan Ilitch. Ambos são agentes da firmeza, da verticalidade e do equilíbrio que deveriam presidir à condição humana, mas que vemos ameaçados na doença. Ambos são condições essenciais para que a saúde se mantenha.
Lembremo-nos de que o termo latino salus, tanto significa saúde como salvação. A enfermidade é injusta porque ameaça o equilíbrio devido à condição humana. Daí a proximidade entre o médico e o filósofo, assinalada na última parte do capítulo, intitulada “Quando cuidar ensina a pensar.” As tarefas do médico e do enfermeiro implicam proximidade, ajudam o doente a resistir perante “as forças entrópicas que atacam e assediam a vida humana.” (p. 78).
O mesmo acontece com o filósofo ao instruir e cuidar das mentes. Mens sana in corpore sano é o desiderato que o autor não menciona, mas que se ajusta às preocupações que assinala. E uma delas diz respeito à “actual medicalização da vida” (p. 79), uma situação que leva a uma maior ênfase dada aos tratamentos farmacológicos e mesmo cirúrgicos, esquecendo que a íntima relação corpo/mente exige uma atenção a ambos os factores.

Cuidar da alma ou cuidar de si é uma tarefa que nada tem de narcísico pois implica uma relação com o outro e uma atenção à sua vulnerabilidade. O “si-mesmo” demarca-se do “si-impessoal” porque é solidão, inquietude e também solicitude perante os outros. A experiência do si mesmo valoriza o singular e o único de cada pessoa, mergulha nos gestos do quotidiano e exige reflexão. Pensar e escrever são actividades que nos transformam carecendo de solidão e de distanciamento, são actividades que custam e que por vezes perturbam, o que nos lembra a frase lapidar de Fernando Pessoa: “Pensar incomoda como andar à chuva”.[4]
Pensar é tomarmo-nos a nós próprios como companhia. Ao falar-nos do que é pensar, Esquirol revisita o “si mesmo” sartreano e a liberdade condicionada pelos limites do nosso corpo, da nossa mente e do nosso ser com os outros. Porque a liberdade do “si mesmo” é justamente devida ao condicionalismo do outro. Somos intimidade mas somos também relação. O que implica fortaleza de espírito, ou seja, capacidade de resistir, de aguentar e de combater, evitando a desmesura, o consumismo e a tristeza. Há que perceber que a salvação reside na reunião e na proximidade. Por isso, cuidar de si não é uma atitude egoísta, mas sim um primeiro passo para a transformação do quotidiano.
Esquirol critica o dogmatismo da actualidade, nomeadamente a ideologia tecnocientífica. Pela mão de Montaigne e de Pascal convida-nos ao reconhecimento humilde do muito que ignoramos, à desconfiança do que consideramos ser actual, à escolha selectiva da informação. A rede anula a intimidade e a possibilidade de escolha. Urge “dizer não em nome da liberdade e da integridade combatendo a ameaça da desintegração.” (p.106). Tal como nos propõe Ernesto Sabato, há que resistir encarando o abismo pois a verdadeira vida coloca-se lateralmente, para além da actualidade. E surge o terceiro e último momento a que o autor chamou “O suor subatómico da água.”
Este título insólito refere-se à hipotética devastação do universo, provocada pela radiação de um buraco negro que se engoliria a si mesmo, ao mundo e a todos os seus habitantes. Contra essa aniquilação, a religiosidade aparece como resposta esconjurante. Esquirol recorre a Freud e à génese por ele traçada do sentimento religioso, considerando este como consequência de uma experiência de desamparo e do consequente desejo de um Pai.
Mais tarde, Hadot falará da função consoladora do sentimento de “pertença a um Todo cósmico e ao conjunto da comunidade humana.” (p. 115). O Todo permite a integração dos singulares mas a consciência dessa união não cala a angústia nem responde à exigência humana de procurar um sentido. A linguagem, na sua dupla dimensão de rogar (pedir) e de interrogar, expressa o movimento da existência. Mas mais do que nomear e descrever, ela informa, comunica e cria um mundo. O diálogo é contacto, companhia e também celebração.

Num contraste com as linguagens da poesia e da música, a ciência é objectiva e informativa. Como tal, não basta para alcançarmos o sentido das coisas. Esquirol não se contenta com a transmissão das mensagens. Recorrendo a Lévinas valoriza a dimensão relacional, que este apelida de ética e que se revela na proximidade de um rosto, no toque de uma carícia, na valorização do quotidiano. A fala é importante porque estabelece relações. Há palavras originais que remetem para gestos originários de acolhimento, de amparo e de cuidado. Daí a importância da palavra “que não exibe a verdade dos factos mas que transmite o abraço da alma.” (p. 139).
O último capítulo tenta ultrapassar o provisório, o precário e o vulnerável, mostrando a condição humana como articulação, junção e sutura. A actual metafísica é uma tentativa de responder a situações limite, algo que determina a marcha da filosofia, tal como a dúvida e o espanto. O limite é o limiar, o extremo que nos é permitido alcançar enquanto seres precários e incompletos que somos. Mas o limite apela àquilo que o confina e lhe é contíguo, pressupõe o limítrofe e, como tal, é abertura para novos modos de viver e de pensar. A debilidade é uma característica essencial do ser humano que se apresenta como precário e vulnerável. A resistência surge quando o nosso esforço se orienta para manter firme uma junção: “Cada um de nós é uma sutura que pede atenção por parte dos outros.”(p.149).
Por isso Esquirol fala-nos do ajuntamento humano nas suas diferentes formas enquanto eros, ágape e philia. O pensamento relaciona e junta. Quer a fala poética quer a filosófica são tentativas de sutura. O niilismo desagregou o ser, marcando profundamente o nosso modo de viver e de pensar. Urge combatê-lo contrapondo-lhe uma filosofia da proximidade. O que implica o regresso ao primeiro momento deste livro, ou seja, ao cuidado dos outros, ao saborear dos prazeres simples, à intimidade e ao renovar da vida partilhando palavras e gestos. Deste modo será mantida “a sempre difícil e precária comunidade do nós.”(p.12). E abre-se para a filosofia uma nova (velha) estrada de resistência íntima e de proximidade.
Notas
[1] Josep Maria Esquirol, A Resistência Íntima. Ensaio de uma filosofia da proximidade, Lisboa, Edições 70, 2020 (155pgs.)
[2] Ortega y Gasset, Que é Filosofia?, Rio de Janeiro, Livro Ibero-Americano, 1961.
[3] Giorgio Bassani, O Jardim dos Finzi Contini, Lisboa, Quetzal, 2010.
[4] Fernando Pessoa , Poemas de Alberto Caeiro, Lisboa, Ática, 1958, p. 20.
Maria Luísa Ribeiro Ferreira é professora catedrática de Filosofia da Faculdade de Letras de Universidade de Lisboa