
“Cento e sessenta milhões. De crianças. A trabalhar. Para nós. Todos os dias. De manhã à noite. Cento e sessenta milhões. Fora os extraoficiais.” Foto © Unicef
Não é muito difícil apanhar um murro no estômago, basta a gente pôr-se a jeito, e pôr-se a jeito pode ser abrir os olhos para as páginas de um jornal e ler um daqueles trabalhos que nos deixam a cara à banda, um aperto na garganta, um incómodo pelo corpo todo, um… um… um murro no estômago!
Por exemplo:
“Há crianças a trabalhar para nós neste preciso momento. Em toda a parte. Exatamente 160 milhões, segundo os dados oficiais. Os extraoficiais desconhecem-se”.
Cento e sessenta milhões. De crianças. A trabalhar. Para nós. Todos os dias. De manhã à noite. Cento e sessenta milhões. Fora os extraoficiais.
Um murro no estômago.
Continuo a citar, agora no original, que se percebe muito bem: “Un total de 97 millones de niños y 63 millones de niñas que cada mañana no agarran sus carteras y se van a la escuela. No. Acuden a las fábricas, a las minas, a los campos, a los mercados, a los talleres textiles, a los prostíbulos… A veces, ni se desplazan. Viven en ellos. Menores de edad, entre 5 y 17 años, con oficio; sin nombre, muchas veces. Sin infancia siempre. Es uno de cada diez en el mundo.”
Uma em cada dez crianças no mundo. A trabalhar. Para nós. Todos os dias. De manhã à noite. Uma em cada dez.
Até dói ao dizer.
“Sus desgraciadas vidas transcurren al ritmo usual (nacer, crecer, reproducirse y morir) en todos los continentes, pero especialmente en África, Asia, América Latina. (…) Ahí están: barren las calles, venden helados, cargan fardos, cuidan el ganado, lavan la ropa o la cosen, buscan oro, cocinan…”
Pois, já se suspeitava: estão especialmente em África, na Ásia, na América Latina. Longe. Longe de nós – mas não os produtos que elas ajudam a manufaturar, as frutas e legumes que elas ajudam a colher. Esses estão ali, à nossa beira, no centro comercial que frequentamos, no supermercado onde fazemos as nossas compras. Adiante…
Pode ser a história de Mónica, uma menina de 12 anos que trabalha, na Bolívia, como vendedora ambulante de gelados e que sonha vir a ter a sua própria gelataria. “Nunca fui ao cinema, nunca tomei banho numa piscina.”
Pode ser Roja, um menino de 12 anos que trabalhou até há pouco tempo, na Índia, a colar peças decorativas em pulseiras. “Começávamos a trabalhar às 8 horas da manhã, até à uma então parávamos uma hora para comer e descansar, às duas voltávamos a trabalhar, até às nove da noite”. Todos os dias. Foi possível resgatá-lo da escravidão. Agora vai à escola.
Pode ser Amina, de 13 anos, que trabalha numa mina de ouro clandestina nos Camarões. Mas antes de ir para a mina, limpa a casa, vai à água, lava a louça, ajuda a cuidar dos irmãos mais pequenos. E quando regressa da mina, cozinha também. Não tem nome de família, não está registada, é como se não existisse. Gostava de vir a ser médica. “Para salvar os meus pais, os meus irmãos e toda a gente que precise.”
Podem ser estes, podem ser muitos mais, dezenas, centenas, milhares, milhões. Milhões. Em tempo de pandemia, as coisas ainda pioraram. O irónico é que, precisamente em 2021, celebramos, sob os auspícios da Unicef, o ano da Eliminação do Trabalho Infantil. Está visto que não aconteceu.
Um murro no estômago. Daqueles que doem que se fartam.
Claro que isto não é novo, claro que estamos fartos de saber, claro que ouvimos histórias destas a todo o momento, onde está o espanto?…
Pois é. Onde está o espanto?
(Tudo o que aqui se conta foi retirado de um dossier recentemente publicado pelo jornal espanhol El País sob o título Viaje al infierno del trabajo infantil cuja leitura bem merece todo o tempo que lhe dediquemos. Apesar do murro no estômago.)