Um outro olhar sobre Julia Kristeva: o diálogo com Jean Vanier sobre a deficiência

| 30 Out 19

Nas margens da filosofia (X)

Julia Kristeva. Foto © Harp1980/Wikimedia Commons

 

No passado dia 10 de Outubro a filósofa Julia Kristeva recebeu o doutoramento honoris causa pela Universidade Católica Portuguesa. Foi sua “madrinha” a prof. Luísa Leal de Faria e quem desconhecesse a actividade da candidata ficaria plenamente informado da ampla gama dos seus interesses bem como da diversidade das suas áreas de investigação. De facto, J.K. é um dos nomes relevantes do pensamento pós-estruturalista contemporâneo, com uma vasta publicação em áreas como a literatura, a filosofia, a crítica literária, a linguística, a intertextualidade, a semiótica, a psicanálise, a política e a arte. Também se tem interessado pelo fenómeno religioso, mostrando como a necessidade de acreditar ocupa um lugar central nas diferentes civilizações (vj. Le Besoin de Croire, Paris, Bayard, 2007) e questionando-se sobre o papel das diferentes religiões nas nossas sociedades pós-modernas.

O meu primeiro contacto com Kristeva remonta aos anos noventa do século passado, quando li o seu romance Les Samouraïs[1]. À semelhança do que Simone de Beauvoir fizera alguns anos antes com Les Mandarins, onde escrevera sobre a vida intelectual de uma França pós-guerra, Kristeva reconstituiu o ambiente intelectual francês dos anos 60 e 70, tendo como principais intervenientes personagens facilmente identificáveis, entre as quais Barthes, Derrida, Foucault, Lacan, Philippe Sollers e ela própria. Atribuindo-lhes nomes fictícios, a autora deu-nos a conhecer o desencanto de uma geração e traçou a falência das ideologias e dos sistemas políticos.

De entre a riqueza e prolixidade da obra de Kristeva – mais de trinta livros publicados, centenas de artigos, inúmeras conferências em universidades de renome – destaco no entanto uma faceta pela qual é menos conhecida: o olhar amoroso sobre a vulnerabilidade, olhar que se expressa através da relação com David, o seu filho deficiente.

Kristeva empenhou-se na luta por uma ética que pudesse coabitar com o limite e com o impossível. Em 2005 organizou na Unesco de Paris os “Estados Gerais das Pessoas com Deficiência”, procurando reunir gente de diferentes religiões e credos políticos. Em 2009, foi publicada a sua correspondência com Jean Vanier, fundador de l’Arche, uma organização internacional que actualmente engloba 147 comunidades em 35 países e em cinco continentes. O seu objectivo é criar casas, programas e redes que integrem pessoas portadoras de deficiência.

Enquanto Vanier vê nos deficientes criaturas de Deus, Kristeva considera-os “sujeitos políticos de um humanismo a reinventar”[2]. No entanto, ambos comungam da ideia de que os deficientes são pessoas com as quais é possível fazer comunidade; ambos consideram os deficientes como uma fonte possível de amizade e de alegria. L’Arche surge como um lugar onde as relações não assentam na competitividade, um lugar onde se acolhe a diferença, onde se aprende a conviver e a ultrapassar os medos.

Para Kristeva, a deficiência ajuda a esclarecer a complexidade do humano, incitando-nos a decifrar a lógica obscura das diferentes vulnerabilidades. Por isso reclama direitos políticos para os deficientes. Conviver com a deficiência é admitir que desconhecemos o que é o ser humano, pois há uma tirania da normalidade que leva ao afastamento dos que se desviam da maioria.

Jean Vanier vê em Jesus um homem fraco, vulnerável, terrivelmente humano mas também divino. Por isso deseja uma Igreja mais perto dos pobres, dos excluídos e dos vulneráveis. A sua fé não é num Deus poderoso mas num Deus que se fez pobre e frágil. Importa assumir essa fragilidade criando possibilidades de uma convivência entre normais e deficientes, de modo a que juntos celebrem a vida.

Kristeva defende que a escuta é feita de ternura e de acolhimento. Não sendo crente, há nela uma sintonia total com a virtude cristã da compaixão. Os deficientes são marginalizados pelas suas limitações. Há que as assumir mas há também que lutar contra preconceitos, como por exemplo a resistência das empresas em contratar pessoas portadoras de deficiência, ou a vergonha das famílias, ou as atitudes de estranheza e de medo perante quem é diferente. Acolher a diferença não é fácil, pois implica a aceitação das nossas próprias fraquezas e, também, da nossa morte. Mas não podemos esquecer que viver humanamente é aceitar as fragilidades, integrando-as e estabelecendo com elas um diálogo permanente.

Através da correspondência travada com Jean Vanier, ficamos com uma visão diferente da filósofa. Os textos que dela conhecíamos mostravam-nos uma pessoa segura e assertiva, com posicionamentos inovadores em domínios complexos e ainda pouco dominados pela comunidade científica. Ao partilhar as suas angústias em Leur regard perce nos ombres, Kristeva assume-se como companheira de todos os que lidam com a deficiência (pais, cuidadores, voluntários), situando-os e situando-se no plano dos “desenraizados da certeza”[3]. Apelando para uma vulnerabilidade solidária propõe-se construir uma filosofia que dê lugar aos que não podem nem nunca poderão filosofar. Através do seu filho David, sentiu na pele o que é ser olhada pela lente da normalidade. E porque esse olhar a magoou, desafia-nos a construir uma nova forma de estar no mundo. Daí a sua proposta de um novo humanismo, no qual os deficientes sejam encarados como parceiros de diálogo. E quando tal não é possível, como pessoas que nos obrigam a repensar a fronteira da normalidade, construindo pontes e ultrapassando barreiras.

 

Maria Luísa Ribeiro Ferreira é professora catedrática de Filosofia da Faculdade de Letras de Universidade de Lisboa

Notas

[1] Les Samouraïs, Paris, Fayard, 1990; trad. portuguesa Os Samurais, Lisboa, Difusão Cultural, 1991.

[2] Julia Kristeva, Jean Vanier, Leur regard perce nos ombres, Paris, Fayard, 2011, p. 15.

[3] Leur regard perce nos ombres, p. 8.

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