
Padre João Gonçalves. Foto © Corrreio do Vouga
Confesso que me sinto desconfortável a escrever esta prosa. Pensava fazê-lo mais tarde, quando estivesse mais liberto da emoção que me causou a morte do padre João Gonçalves, coordenador nacional da Pastoral Prisional católica. Mas, pensando melhor, decidi fazê-lo já, porque, em muitas circunstâncias, penso que é bom fazer brotar tudo o que nos grita a alma. Assim, somos nós próprios.
A morte é mais que uma etapa da vida. Acredito que é a “porta maior” das muitas portas que, ao longo da existência humana se abrem, como outras se fecham. Abre-se para se entrar num espaço infinito onde habita o AMOR sublime. Ninguém escapa passar por esta porta. A Natureza, com as suas limitações e finitudes, encarrega-se de não fazer distinções. Mas há pessoas que não deveriam ultrapassar os seus umbrais tão cedo como acontece. Reconheço e aceito que, para familiares e amigos, seja qual for a idade do seu ente querido, a morte chega sempre cedo. Mas há gente que deveria permanecer mais tempo entre nós. Todos os que acrescentam mais vida à vida. Felizmente existe muita gente, de credos diferentes, de ideologias contrárias ou sem nenhuma destas condições, que se tornam semeadores de “amizade social”[1] – para usar este novo conceito criado pelo Papa Francisco – que, elevada à potência máxima, se torna naquilo que os crentes chamam “reino de Deus”.
O padre João, “batizado” por Inês Leitão[2] como o “padre das prisões portuguesas”, foi, sobretudo, um defensor dos direitos humanos, tendo em conta a sua vasta experiência pastoral na área social, em alguns dos seus vetores de intervenção. Mas foi, de facto, a humanização do nosso sistema prisional o eixo preferencial da sua missão como homem-cristão-sacerdote-católico.
Propositadamente, refiro-me ao sistema prisional como um todo, pois sempre percebi que, embora as suas principais preocupações se centrassem na pessoa reclusa, não descuidava as atenções devidas a todos os/as servidores/as das cadeias, desde os guardas aos mais altos responsáveis. Era um homem de diálogo paciente. Muitas vezes o deixou transparecer, tanto nas relações com as entidades eclesiais, como com as governativas. Manteve, até ao fim, o sonho de que cada Diocese tivesse o seu serviço de coordenação diocesana da Pastoral Penitenciária e que em cada paróquia houvesse um pequenino núcleo desta pastoral, porque segundo dizia: “Devem ser poucas as paróquias que não tenham, pelo menos, alguns paroquianos familiares e amigos de reclusas e reclusos”.
Partilhou muitas das limitações da sua ação como coordenador nacional deste setor da ação pastoral. Sofria pelo quase generalizado alheamento, não na retórica, mas na prática, em que a Igreja em Portugal vivia, relativamente ao acompanhamento e reinserção das pessoas reclusas e ao apoio social necessário a muitas das suas famílias. Sempre que o ouvi expressar este tipo de preocupações o fazia com serenidade. Aliás, nunca vi o padre João Gonçalves maldisposto. Respirava alegria e bom humor. Isso fazia dele um excelente comunicador.
Na partilha das suas experiências sempre intuí que, nas visitas, sobretudo ao Estabelecimento Prisional de Aveiro, se preocupava com que os presos vivessem a privação da liberdade sem beliscar a dignidade de cada um, ajudando-os a recomeçar a vida quando terminassem o cumprimento das penas. Todavia, não era só a liberdade que o preocupava. Era muito mais que isso. Procurava que estes seus irmãos e irmãs compreendessem que a libertação é mais importante que a liberdade das amarras de um território delimitado por grades.
Este seu desígnio não se aplicava apenas aos prisioneiros. Por isso, reafirmo que sempre se preocupou com todas as pessoas que dão corpo ao sistema prisional. Ele, mesmo sem o dizer, tinha como destinatários da sua missão “todos os homens e o homem todo”[3]. Por isso, perdoe-me a amiga Inês, mas o padre João Gonçalves foi, sobretudo um “padre pela libertação”. Sê-lo, exige mais que lutar pela conquista de uma liberdade física.
Não sou dos que defendem não haver ninguém insubstituível. Somos seres únicos. Outros poderão fazer o mesmo que o padre João, mas não da mesma maneira. Com maior paixão e resiliência como ele não será fácil. Por isso, deveria, com saúde, ficar mais tempo connosco.
A opção preferencial pelos pobres está assumida como prioridade pastoral. Temos de reconhecer que, efetivamente, não tem sido assim. Mas a implantação do Evangelho ou passa pela atenção aos pobres e aos, socialmente, excluídos, sejam eles quem forem, ou a Boa Notícia pode não ser nem notícia, nem boa para os tempos de hoje. Fazer esse esforço é honrar os heroicos esforços do padre que anunciou, sem esmorecer, a “libertação aos cativos”[4].
Eugénio Fonseca é presidente da Confederação Portuguesa do Voluntariado e ex-presidente da Cáritas Portuguesa
Notas
[1] Cf. FRANCISCO, Carta Encíclica Fratelli Tutti, 5 (3 de outubro de 2020), Lisboa: Paulinas 2020.
[2] Cf. É autora deste livro, publicado pela Editorial Cáritas, em 2016, e de guiões de vários documentários nacionais e internacionais (incluindo um também a ele dedicado). Exerce funções de produtora na ID Produções Criativas.
[3] Cf. Paulo VI, Carta Encíclica Populorum Progressio, 14 (26 de março de 1967), Lisboa: Paulinas.
[4] Cf. Lc 4, 18.