
Milton Nascimento: uma profunda entrega ao seu público. Foto: Direitos reservados.
“Ponta de areia
Ponto final
Da Bahia-Minas
Estrada natural.”
Escrevo quarta-feira, 29, no exato momento em que Bituca (como não se cansa de dizer que gosta de ser tratado) celebra mais um momento de profunda entrega com o seu público em Portugal: esta noite, Milton Nascimento está na Casa da Música, no Porto, em mais um concerto da digressão A Última Sessão de Música, com que se despede dos palcos. Em Portugal passou já por Lisboa (Coliseu dos Recreios), Castelo Branco (Cineteatro Avenida), Porto (Casa da Música); neste domingo, dia 3 de julho, terminará a sua passagem no nosso país em Évora (Feira de São João, 22h).
O “mais mineiro de todos os cariocas” completa, agora, 60 anos de carreira, a meses de festejar os 80 de idade; nascido no Rio de Janeiro, Milton “adotou” Minas Gerais como sua casa e transformou-se num dos mais talentosos e reconhecidos músicos da Música Popular Brasileira: compositor e multi-intrumentista, senhor de uma voz única, escreveu para e/ou cantou com inúmeros e variados artistas, como sejam Elis Regina (“o grande amor da minha vida”), Maria Bethânia, Gal Costa, Caetano Veloso, Simone, Chico Buarque, Gilberto Gil, Lô Borges (Clube da Esquina), Criolo, Angra, Tom Jobim, Paul Simon, Mercedes Sosa, Pat Metheny, Peter Gabriel, Björk, Duran Duran, Herbie Hancock, Wayne Shorter, Sarah Vaughan, Quincy Jones, mas também Sérgio Godinho, Carminho, Ana Moura, António Zambujo,…
Com mais de 30 álbuns de estúdio e quase uma dezena de registos gravados ao vivo, permito-me destacar a parceria com dois outros mineiros: Wagner Tiso, companheiro de Bituca desde o Clube da Esquina, e Fernando Brand, com quem Milton compôs mais de 200 canções, a começar pelo tema-título do seu primeiro disco a solo, Travessia, ou Sentinela, entre tantas, tantas outras.
Cinco Grammys premiaram tão importante e rica contribuição para a música: propositadamente não digo “brasileira”, porque o é para “ela”, toda.
Um conjunto de temas atravessa esta longa carreira: o amor e a amizade, o Brasil, a América (Latina), a exploração do trabalho, as desigualdades; comprometido, sempre, com a concretização da democracia (Coração de Estudante, a canção de Wagner Tiso que interpreta, havia sido transformada no hino do movimento “Diretas já!”), escreve Carta à República, manifesto em defesa de uma democracia adulta, exigente, justa:
“… e foi por ter posto a mão no futuro
Que no presente preciso ser duro!
E eu não posso me acomodar:
Quero um país melhor!”
Esse engajamento e essa exigência levam Milton Nascimento, no início da década de 80 do século passado, a aceitar o desafio de D. Pedro Casaldáliga e de Pedro Tierra de escrever a Missa dos Quilombos, celebrada em 20 de novembro de 1981, em Recife, para oito mil pessoas: “O ato religioso denunciou as consequências da escravidão e do preconceito no Brasil e transformou-se numa cerimónia de fé, comunhão, música e ritmo, a partir da atitude revolucionária de membros da Igreja Católica em favor da introdução das referências culturais de diferentes povos na eucaristia.” O disco que viria a editar gravado na celebração realizada na igreja de Nossa Senhora Mãe dos Homens, em Caraça (Minas Gerais), e que contou com a participação de D. Hélder Câmara, bispo brasileiro altamente comprometido com a luta pela justiça e dignidade de todas as pessoas, profundo defensor dos direitos humanos.
“Há que se cuidar da vida. / Há que se cuidar do mundo.”: estes versos de Coração de Estudante quase podem ser o mote de toda a criação de Milton “Bituca” Nascimento, um homem que, humildemente, afirma: “Posso dizer que sou muito feliz por ter tido a sorte de cantar (e também de compor) ao lado de grandes ídolos e amigos, como Chico Buarque, Tom Jobim, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Elis Regina, Gal Costa, Mercedes Sosa, Pat Metheny, Peter Gabriel, James Taylor, Cat Stevens, Joe Anderson, Paul Simon, Duran Duran, Bjork e Esperanza Spalding”, acrescentando: “Outro acontecimento que marcou muito a minha carreira foi esse, de quando Wayne Shorter me convidou para gravar com ele, nos Estados Unidos, o disco Native Dancer, considerado um marco na world music. Com isso, as portas do mundo se abriram. Através desse disco com Wayne, minhas músicas chegaram até Stan Getz, George Duke, e Sarah Vaughan.”

Milton Nascimento: “Coisa que gosto é poder partir sem ter planos / Melhor ainda é poder voltar quando quero.” Foto: Direitos reservados
Em Encontros e Despedidas, o tema-título do espantoso disco editado em 1985 assinado com o seu amigo Fernando Brant, Milton prenuncia a decisão que tomou, agora: preparar uma digressão para se despedir dos seus fãs. Mais do que um concerto, foi-nos dado, a quem assistiu, participar numa celebração de amizade funda, entre um músico que tanto, de tão belo, ofereceu ao seu público e que este, agora, retribui, participando, festejando, aplaudindo, fazendo coro. Ancorado por uma fantástica banda composta por Wilson Lopes (direção musical, arranjos e guitarra), Lincoln Cheib (bateria), Frederico Heliodoro (baixo), Widor Santiago (sopros), Ademir “Fox” (piano e teclado), Ronaldo Silva (percussão) e Zé Ibarra (vocais, flauta e violão), Bituca percorreu estes 60 anos de criação, trazendo a Portugal um leque de canções que marcam este percurso sem, contudo (e infelizmente!), o conseguir revisitar todo:
Tambores de Minas (Incidental)/Ponta de Areia
Catavento (Incidental)/Canção do Sal
Morro Velho
Outubro
Veracruz +Pai Grande
Para Lennon e McCartney
Cais
Tudo O Que Você Podia Ser
San Vicente
Clube da Esquina 2
Lília
Nada Será Como Antes
A Última Sessão de Música
Fé Cega Faca Amolada/Paula e Bebeto
Volver a Los 17
Cálix Bento/Peixinhos do Mar/Cuitelinho
Canção da América
Caçador de Mim
Nos Bailes da Vida
Tema de Tostão + Fazenda
O Cio da Terra
Maria Maria
foram os temas com que fomos parte da celebração. Para o encore ainda nos foram reservados Encontros e Despedidas (com a sua mais recente amiga portuguesa, Maro) e Travessia, a primeira, como que a marcar um regresso ao local de partida.
(Próximo concerto: 03 jul, Feira de São João, Évora; algumas imagens do concerto em Castelo Branco, no qual se baseia esta crónica, podem ver-se na página no Facebook do Cine-Teatro Avenida, daquela cidade)
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Milton Nascimento, A Última Sessão de Música 2022
Diretor Artístico: Augusto Kesrouani Nascimento
Diretores Gerais: Augusto Kesrouani Nascimento E Raphael Pulga
Direção Musical, Arranjos e Guitarra: Wilson Lopes
Tour Manager: Vicente Barros
Stage Manager: Darck Fonseca
Bateria: Lincoln Cheib
Baixo: Frederico Heliodoro
Sopros: Widor Santiago
Piano E Teclado: Ademir “Fox”
Percussão: Ronaldo Silva
Vocais, Flauta e Violão: Zé Ibarra
Design de Luz: Arthur Farinon
Iluminador: Julien Katona
Engenheiro de P.A: Aurélio Kauffmann
Engenheiro de Monitor: Chicletinho
Assessoria de Imprensa: Danilo “Japa” Nuha
Preparação Vocal: Janaina Pimenta
Fotografia: Marcos Hermes
Booker Europeu: Backstage Productions
Realização: Nascimento Música