
“No horizonte da espiritualidade religiosa, seja ela cristã ou enraizada noutras correntes espirituais, está sempre um processo de transformação.” Pormenor de painel de azulejos na Mesquita Central de Lisboa, representando os atributos de Deus. Foto © António Marujo
Falava com alguém sobre meditação. “A meditação que faço não é religiosa”, confidenciava-me; pedi que me esclarecesse então o que buscava nessa meditação a-religiosa; “Procuramos o nosso Deus interior, aquele que existe em mim e que posso ser eu”, respondeu-me. Fiquei confundido só pela terminologia confusa.
Nessa semana entrei na livraria e vi os destaques. Livros sobre aquilo que há poucos anos seria impensável: dietas tendo por base o jejum, sobre a filosofia zen, sobre a aceitação de si mesmo, sobre a escuta da voz interior, mindfulness, inteligência emocional, tarot, propostas para nos reencontrarmos, poder e cura, vida saudável, e mais uns que destoavam no âmbito daqueles destaques.
Vi-me a pensar por onde anda a proposta da espiritualidade cristã e da visão da vida e do mundo. Claro que há dois ou três autores que têm honra desses destaques, pelo que escrevem e pelo marketing das suas editoras. Mas a pergunta fundamental que se me impôs foi outra, talvez mais oportuna: “O que vale uma espiritualidade que coloca o próprio como o centro de si mesmo?”
Num tempo pós-moderno, classificado por Lipovestky como A Era do Vazio, ou por Bauman com o termo “modernidade líquida”, a experiência de vazio, da aceleração do tempo, da fragmentação das relações e das presenças, talvez esta literatura vá ao encontro de uma busca de plenitude e sentido de quem vive esse vazio-de-si-mesmo. Mas este é, ao mesmo tempo, o grande engano que o tempo revelará: as grandes filosofias que quiseram matar Deus, dando origem a ateísmos modernos e existencialismos, também mataram o Homem.
Sempre que o Homem procura ser o centro-de-si-mesmo, o individualismo e o relativismo crescem gerando o autoconsumo de si mesmo. Espiritualmente, há uma espiral autocentrada presente nos livros de autoajuda e desenvolvimento pessoal, que na bondade da intenção, não têm a capacidade de ajudar a sair de um ciclo vicioso egoísta e possessivo. No vazio cabem sempre muitas coisas, mas nenhuma se encaixa verdadeiramente.
No horizonte da espiritualidade religiosa, seja ela cristã ou enraizada noutras correntes espirituais, está sempre um processo de transformação. O Homem não pode ser o centro-de-si-mesmo, nem mesmo na busca de um tal Deus-em-si, mas encontra esse centro/equilíbrio/harmonia da Transcendência. Esse encontro vital, de energia, foco e ponto de equilíbrio, é aquele a partir do qual a vida de cada um se pode entender como processo, caminho ou itinerário.
A tentativa de uma espiritualidade desprovida da dimensão transcendente ou valorizando a auto-transcendência conta apenas com uma visão que olha para a pessoa como o fim-de-si-mesma e, nela, as forças e capacidades suficientes para se centrar no caminho de uma autotransformação.
Qual a novidade de uma espiritualidade cristã? Talvez passe muito pela aquisição de uma consciência existencial da fé. Esta consciência vai para além de um mero auto-centramento energético, mas como processo, é mais dádiva que receção, é mais oblação que posse, é mais integralidade de vida que reducionismo espiritual.
Parece-me que algumas espiritualidades fecham a pessoa no mero objeto de alcançar uma dita felicidade e paz interior, mas não verdadeiramente em progressos espirituais de alcance existencial que passem por opções morais e atitudes consequentes e comportamentais. Esses são consequências secundárias, e não verdadeira opção transformadora e transformante.
Sou daqueles que não acredita numa espiritualidade sem religião. Ou, pelo menos, não lhe chamemos espiritualidade, mas alguma filosofia de vida. Uma espiritualidade sem religião deixa o Homem só e à sua sorte. A religião, antes de qualquer código, moral ou lei, nasce como resposta do Homem a essa dimensão espiritual da vida. Talvez o tempo que vivemos esteja a exigir que as religiões façam emergir o seu património espiritual, por vezes tão escondido.
João Alves é padre católico da diocese de Aveiro e pároco da paróquia da Vera-Cruz