
O que podemos observar na sala de exposições temporárias do MNMC é fruto do resgate de 70 peças (escultura e pintura), realizado nas próprias reservas do Museu. Foto © Arlindo Homem, cedida pelo autor.
A exposição Resgatar a Ordem – iconografias [s]em reserva[s], patente no Museu Nacional de Machado de Castro (MNMC), em Coimbra, até ao próximo dia 19, é motivo mais do que suficiente para uma visita àquele espaço museológico e à cidade do Mondego, num destes dois fins de semana, ainda por cima prolongados.
Desde logo, o título carrega um programa ancorado nas “funções fundamentais dos museus”[1], como sejam a preservação do património, a investigação/estudo dos acervos, a comunicação (interpretação e disseminação ativa do conhecimento sobre as coleções) e a educação.
O que podemos observar na sala de exposições temporárias do MNMC é fruto do resgate de 70 peças (escultura e pintura), realizado nas próprias reservas do Museu; o tratamento de conservação preventiva restituiu às peças a clareza que permite o novo olhar que a exposição nos traz.
O rigoroso estudo a que foram submetidas, depois, daria relevo aos processos de incorporação que estiveram na génese da constituição de muitos dos museus em Portugal, há cerca de 100 anos. Em declarações à TSF, Sandra Costa Saldanha (comissária científica; Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra), afirma que a investigação realizada “permitiu identificar temáticas (algumas que nem eram conhecidas), cruzar estes objetos com os seus locais de origem, compreender programas iconográficos, devolver novo sentido a estas peças que pairavam nas reservas do Museu”[2]; a este propósito, no mesmo programa, também Maria de Lurdes Craveiro (diretora do MNMC), havia de referir que, se até aqui muitas destas peças se encontravam nas reservas do museu, inertes e descontextualizadas, agora o referido estudo devolveu a muitas delas a inteligibilidade possível: conhecendo-lhes a proveniência, passamos a compreender bastante melhor cada uma das peças[3]. Sabemos, hoje, que este conjunto de peças provém de diversas instituições religiosas (conventos, mosteiros, igrejas,…) da cidade e região de Coimbra, daí resultando a variedade temática, de programas catequéticos e as diferenças plásticas que as peças apresentam.
Dos trabalhos que aqui mostramos, sublinho as duas representações de “Maria Madalena”, cada uma retratando o aspeto da vida da santa que mais importa a quem a encomendou e/ou a fez (a penitente, num caso; a mulher serena e feliz por se sentir redimida, no outro)[4], a surpresa de “O regresso do Egipto”, as belas quanto enigmáticas tábuas representando “Santa Bárbara”, “São Bartolomeu” e “Santa Catarina” (de que se desconhecem, ainda, a proveniência e a função, não permitindo uma clara leitura das obras), o “São João Batista” de proveniência (ainda) desconhecida, o incrédulo “São Tomé” e a “Coroação da Virgem”, trabalho atribuído a Simão Rodrigues e Domingos Vieira Serrão (a quem se atribui, também, uma “Maria Madalena” eremita).
A exposição que daí resultou adaptou-se de forma interessante ao espaço preexistente da sala, organizando-se em quatro núcleos: 1. Ordens Religiosas – agentes de renovação; 2. Santos e Heróis – modelos de vida cristã; 3. Maria – a exaltação divina da Mãe de Deus; 4. Cristo – a natureza humana do Redentor.
Para mais, e voltamos às palavras de Maria de Lurdes Craveiro, todo este processo desencadeou uma série de ações que estão ainda em curso[5] e que se prolongarão no tempo, acrescentarei: trata-se, nomeadamente, da campanha de restauro que foi montada de modo a acudir a 14 destas obras (sendo uma delas uma “Sagrada Família”), todas de escultura, com o apoio da Liga de Amigos do Museu Nacional de Machado de Castro, seguindo um modelo já utilizado noutras instituições museológicas (e, provavelmente, não tão utilizado quanto poderia); em desdobrável próprio, retrata-se, ainda que sumariamente, o estado de conservação destas 14 obras, indicando-se o valor do respetivo restauro e aceitando todas as contribuições. Poderá obter todas as informações sobre esta campanha clicando aqui.

Pormenores de algumas das peças que podem ser vistas nesta exposição. Fotos © Sandra Costa Saldanha, cedidas pela autora.
Do meu ponto de vista, fará falta o catálogo desta mostra para uma resposta mais cabal à função da “comunicação”, que com a “preservação do património” e a “investigação/estudo dos acervos” (três das quatro “funções fundamentais dos museus” acima referidas), me parecem estar já bem evidenciadas.
Resta-me falar do último: a educação. “Os museus atuam na educação formal e informal e na aprendizagem ao longo da vida, através do desenvolvimento e da transmissão do conhecimento, de programas educativos e pedagógicos, em parceria com outras instituições, especialmente as escolas. Os programas educativos nos museus contribuem fundamentalmente para educar os diversos públicos acerca dos temas das suas coleções e sobre a cidadania, bem como ajudam a consciencializar sobre a importância de se preservar o património e impulsionam a criatividade.”[6] Se as visitas guiadas à exposição são, já, uma estratégia comummente utilizada, as pequenas fichas de cada uma das 70 peças, publicadas ou a publicar na página de Facebook do MNMC (como as que se podem ver acima, relativas às peças que destaco), parecem-me um instrumento simples, eficaz e guardável que Comissária e equipa do Museu prepararam, numa linguagem acessível a todos os públicos.
Se, como afirmava, a exposição Resgatar a Ordem – iconografias [s]em reserva[s] está ancorada nas “funções fundamentais dos museus”, ela sublinhou de modo bem evidente, a meu ver, a reflexão que este ano nos foi proposta para as comemorações do Dia Internacional dos Museus, celebrado sempre a 18 de maio: O Poder dos Museus – Reciclar o Passado. O Museu Nacional de Machado de Castro usou esse poder e convida-nos a saborear o resultado até 19 de junho.
Notas
[1] UNESCO. Recomendação relativa à proteção e promoção dos museus e das coleções, da sua diversidade e do seu papel na sociedade. Paris, 20 de novembro de 2015. (tradução não oficial da Recomendação da UNESCO, realizada pelo Instituto Brasileiro de Museus e revista pelo ICOM Portugal.) consultado em linha a 6 de junho de 2022, em https://icom-portugal.org/multimedia/documentos/UNESCO_PMC.pdf
[2] Encontros com o Património – Resgatar a Ordem (conduzido por Manuel Vilas-Boas), 22 de maio de 2022; pode ouvir-se o programa em https://www.tsf.pt/programa/encontros-com-o-patrimonio.html
[3] idem
[4] «Esta exposição assenta em dois objetivos fundamentais: a transparência das ações de conservação preventiva que ocorrem nos acervos de pintura e escultura […] que se encontram nas reservas do MNMC; o investimento numa abordagem que identifica as proveniências das peças (revertendo o sentido de aceitação quanto à fórmula “proveniência desconhecida”), dá outro enquadramento cultural e artístico e, ao mesmo tempo, confere outra inteligibilidade às opções iconográficas das ordens religiosas.». Comissária Sandra Costa Saldanha (sublinhado meu): texto publicado em linha em http://www.patrimoniocultural.gov.pt/pt/agenda/exhibitions/resgatar-ordem-iconografias-sem-reservas, consultado a 6 de junho de 2022.
[5] idem
[6] UNESCO. Recomendação relativa à proteção e promoção dos museus e das coleções, da sua diversidade e do seu papel na sociedade. (supra cit.)
Resgatar a Ordem – iconografias [s]em reserva[s]
Museu Nacional de Machado de Castro, Coimbra
De terça a domingo, das 10h00 às 18h00
Até 19 de Junho