Nas margens da filosofia (XXVI)
Nestes tempos de confinamento somos em grande parte privados da convivência social. Mas a convivência com outro tipo de amigos não foi, felizmente, afectada – estão neste caso os escritores e os filósofos. Embora sempre fizessem parte integrante das nossas vidas, a sua presença intensificou-se nestes meses, levando-nos a viver com eles a situação de isolamento que nos foi imposta.
Os livros tornaram-se os nossos companheiros de diálogo, permitiram-nos superar a ausência do toque e do abraço, consolaram as nossas angústias; preencheram pausas e silêncios. Lemos as novidades, mas também revisitámos livros há muito esquecidos, encontrando neles a saída possível para a nossa angústia e para os nossos medos. Os livros preencheram os hiatos de um isolamento imposto e mantiveram-nos activos, inquietaram-nos, obrigaram-nos a rever certas passagens com um novo olhar porque as integrámos num aqui e num agora totalmente diferentes. E por isso as destacámos e lhes demos importância, isolando-as da narrativa em que primitivamente se integravam. Certas linhas impuseram-se e autonomizaram-se, ganhando um relevo inesperado porque se incorporaram na situação que hoje vivemos, clarificando-a e obrigando-nos a repensá-la.
Aconteceu-me isto ao reler o conto “Declaração” de Susan Sonntag.[1] No primeiro contacto que em tempos pré-pandémicos tive com esta história, ela não só me intrigou como me irritou pelo cruzamento de diferentes narrativas que aparentemente não se relacionavam mas que Sontag, no seu estilo muito próprio, obrigou a coabitarem. Tal acontece com a relação entre a sua amiga Julia, doente cancerosa que acaba por se suicidar, e a negra Doris que nos é apresentada nas suas múltiplas metamorfoses. De facto, ela é primeiramente vista como Doris I, empregada de Julia, mas depois também como Doris II, licenciada em Letras e como Doris III, mãe de uma criminosa que vai visitar à prisão. É um conto alegórico e delirante, no qual a autora se deixa conduzir pelas personagens que criou, abandonando definitivamente o fio lógico da narrativa – algo a que nos habituara nos seus ensaios e em romances como A Amante do Vulcão ou Na América.
Nas muitas arrumações a que me dediquei para preencher os tempos mortos da pandemia, calhou-me pegar de novo no volume das Histórias de Sontag. Abri-o por acaso no conto “Declaração”. E talvez não por acaso, na seguinte passagem que me interpelou pela sua actualidade: ” À nossa volta, tanto quanto me é possível ver, as pessoas andam a tentar ser normais. O que exige grande esforço. (…). As pessoas andam a tentar não se importar, não se importar demasiado. Não ter medo.”[2]
Guiada por estas linhas fui levada a repensar este novo conceito de normalidade que se instalou com a pandemia e que anos atrás consideraríamos pertencer ao domínio da ficção científica. E elenco uma série de comportamentos e de atitudes que já fazem parte desta nova maneira de habitar o mundo e de nos relacionarmos com os outros. Entre eles destacamos: a impossibilidade de fazer planos a médio e a longo prazo; a dificuldade de viajar para outros países; o medo de sair à rua; a máscara como segunda pele que usamos fora de casa e a ocultação das nossas emoções pelo seu uso; a consideração do outro como possível portador de covid; a dificuldade em promover encontros presenciais com familiares e amigos; a institucionalização do teletrabalho; o papel determinante dos zooms em aulas, conferências e reuniões; a diferente manifestação dos afectos – abraçar e beijar tornou-se um perigo máximo mas em contrapartida as cotoveladas foram aceites como cumprimento normal; o tempo que dedicamos à leitura de infinitas mensagens que reencaminhamos para conhecidos e amigos; a lavagem obsessiva das mãos.
Tememos que algumas destas práticas sejam irreversíveis e se instalem definitivamente nas nossas vidas. Mas acreditamos (e sobretudo esperamos) regressar tão brevemente quanto possível à antiga normalidade.
É com esse desiderato que esconjuramos os nossos medos.
[1] “Declaração” in Susan Sontag, Histórias, Lisboa, Quetzal, 2019, pp. 308- 333.
[2] Susan Sontag, Histórias, pp. 315 e 316.
Maria Luísa Ribeiro Ferreira é professora Catedrática de Filosofia da Faculdade de Letras de Universidade de Lisboa