
“A criação do homem e da mulher «à imagem e semelhança de Deus» representa o cume da criação na sua bondade e beleza.”
Um pouco por todo o lado, ouvem-se vozes a sugerir mudanças no âmbito da ética sexual católica. Nota-se a vontade de “atualização”, no sentido de adaptação à mentalidade e práticas correntes, sem a qual qualquer proposta da Igreja neste campo estará condenada à irrelevância. É o que se verifica nas conclusões do chamado “Caminho Sinodal” alemão, mas não apenas.
De alguma forma, parece que só agora chegam à Igreja Católica os reflexos da “revolução sexual” que abalou o mundo ocidental desde finais dos anos sessenta do século passado e que cessam as resistências que desde essa altura (em que também foi publicada a encíclica Humane Vitae de São Paulo VI) ela, talvez mais do que qualquer outra instituição, opôs a essa “revolução”. É certo que as propostas de mudança da ética católica não chegam tão longe como as que surgiram dessa “revolução”, mas não deixam de ser por ela influenciadas.
Trata-se de uma influência muito retardada que, em meu entender, não pode ser vista como sinal de progresso. Ao longo da história, muitas foram as ocasiões em que o bem das pessoas e das comunidades impunha uma resistência ao “espírito do tempo” e a assistência divina que ilumina a Igreja conduziu a essa resistência, com benefícios que se vieram a revelar no futuro.
É o que se tem verificado em relação a esta “revolução sexual”. Nem por acaso, tem sido recentemente destacado, com base em pressupostos que não coincidem com os da moral cristã e católica e se situam antes em certas correntes feministas, como os frutos dessa “revolução sexual”, ao contrário do que muitas vezes se tem proclamado, foram e são maléficos na perspetiva da dignidade das pessoas e do bem da comunidade, sobretudo no que às mulheres diz respeito. Revelam-no dois livros recentes: de Louise Perry, Contra la Revolución Sexual – Una Nueva Guìa para el Sexo en el Siglo XXI (tradução espanhola), La Esfera de los Libros, Madrid 2023; e, de Christine Emba, Rethinking Sex a Provocation; Sentinel, 2022. Neles se afirma, em síntese, que quando se reduz a moral sexual ao respeito pelo consentimento mútuo (como se verifica hoje em muitos programas de “educação” sexual), se deixa o campo livre a muitos comportamentos contrários à dignidade da pessoa porque a reduzem a objeto; que não é aceitável a ideia de que todos os impulsos sexuais são bons e devem ser satisfeitos; que o sexo sem compromisso afeta particularmente as mulheres, por razões biológicas e psicológicas; que o casamento é benéfico também sobretudo na perspetiva do bem da mulher e da maternidade; que a difusão do divórcio (que vai muito para além das situações extremas de violência física ou psicológica) também não protege as mulheres; que o combate contra a violência e o assédio sexuais não pode assentar apenas na repressão penal e exige a redescoberta de princípios supostamente caducos, como a continência, a integridade e a dignidade.
Há que salientar este aspeto como exemplo da importância de caminhar “contra a corrente” e de não seguir todas as modas quando o exige a coerência com princípios perenes como os que fundam a ética sexual católica.
Importa, sim, saber apresentar esses princípios da forma mais compreensível e na sua autenticidade e beleza. Eles não assentam, contra o que muitas vezes se afirma, numa visão negativa do corpo e da sexualidade (desde logo, porque o cristianismo é a religião da incarnação).
A teologia do corpo de São João Paulo II leva-nos a contemplar o sentido da corporeidade humana e do plano divino sobre o amor humano na sua expressão sexual. O corpo humano, na sua dualidade masculina e feminina, é sinal desse plano. O corpo humano tem um significado e a dualidade sexual tem um significado. O corpo masculino não tem significado isoladamente, como o corpo feminino não tem significado isoladamente, esse significado decorre dessa dualidade; é um significado esponsal porque apela à doação sincera e total de si mesmo: homem e mulher são criados um para o outro, para se doarem um ao outro. E é essa doação recíproca que gera a vida como fruto do amor.
A criação do homem e da mulher «à imagem e semelhança de Deus» representa o cume da criação na sua bondade e beleza. A doação recíproca que conduz à união do homem e da mulher numa «só carne» é sinal do mistério divino, como realidade visível que permite vislumbrar, de forma analógica e imperfeita, uma outra realidade invisível. Essa comunhão corporal é sinal da entrega e doação de Deus para com a humanidade (e a Escritura com muita frequência recorre à imagem esponsal para exprimir o amor de Deus para com a humanidade). Essa comunhão, também na sua potencial fecundidade, é sinal da eterna comunhão de Pessoas numa doação de amor recíproco e total que é a essência de Deus uno e trino.
Compreende-se, assim, que, no desígnio de Deus, a união sexual deva ocorrer no contexto do casamento (e, para os batizados, do sacramento do matrimónio). Para corresponder a esse desígnio, essa união deva exprimir um amor oblativo (um amor de doação e não apenas sentimental), livre, fiel, total (de corpo e espírito, do presente e do futuro), incondicional e aberto à vida na sua generosidade (porque não se confunde com um egoísmo a dois fechado sobre si).
Nesta perspetiva, a castidade não é repressiva, é libertadora. Trata-se da liberdade perante impulsos que não conduzem à doação de si mesmo, mas ao seu domínio como meios ao serviço dessa doação.
Quando se afirma que a doutrina católica reflete uma visão negativa da sexualidade e que ela deve adaptar-se à mentalidade hoje corrente para superar essa visão, certamente que se desconhece a teologia do corpo de São João Paulo II. Não conheço outra visão que, sem ignorar os limites da natureza humana decaída, valorize o corpo humano e a sexualidade de um modo sequer comparável a este.
A valorização do celibato pelo “Reino de Deus” não assenta na desvalorização da sexualidade e do casamento. Trata-se de uma vocação a uma outra forma (não corporal e mais ampla e universal) de viver a doação esponsal e a fecundidade: um sinal profético da união esponsal do corpo glorioso e ressuscitado com o próprio Deus.
Dir-se-á, porém, que se trata de uma visão sublime, mas muito distante da realidade concreta das pessoas e famílias de hoje. É verdade. Mas quando São Paulo, às primeiras comunidades cristãs, falou da grandeza do sacramento do matrimónio como sinal do amor de Cristo pela sua Igreja, não era menor a distância entre esta visão e a realidade concreta desses tempos. Certamente não se conformou com a mentalidade então dominante (Rm 12,2) e não deixou de apontar para o Alto. Também hoje não devemos conformar-nos com a mentalidade corrente e não devamos deixar de apontar para o Alto, mesmo que este nos pareça distante. Ou pensar que estamos perante um ideal inatingível e reservado a poucos eleitos.
A teologia do corpo de São João Paulo II é um património doutrinal riquíssimo ainda desconhecido por muitos e não aprofundado e vivido em todas as suas implicações. Há quem fale a seu propósito numa “revolução” (em “revolução woytiliana”), numa outra “revolução sexual”. pela natureza profundamente inovadora da sua visão positiva da sexualidade humana. Não pode ser esquecida e arrumada numa gaveta de antiguidades caducas e ultrapassadas.
Pedro Vaz Patto é presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz.