Uma semente de mostarda (leitura de “Criptopórtico”, de Ruy Ventura)

| 16 Abr 2023

Imagem da capa de Criptopórtico, ilustração de © Mikalojus Konstantinas Ciurlionis, Sparks [III] (1906)

Imagem da capa de Criptopórtico, ilustração de © Mikalojus Konstantinas Ciurlionis, Sparks [III] (1906)

No princípio já existia o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus. Tudo começou a existir por meio d’ Ele. Assim se inicia o Prólogo do Evangelho de S. João. E mais adiante: E o Verbo fez-se Homem e habitou entre nós. Nesta referência a Jesus Cristo a palavra ganhou um significado sagrado e criador. Talvez por isso, Ruy Ventura no texto introdutório da sua obra afirma o seguinte: … abdiquei da versificação e de outros artifícios, centrando cada um dos poemas no que mais importa – as suas palavras, as suas frases, a sua sintaxe e a sua capacidade imagética, simbólica e escarificadora. Ora, o que espanta logo à primeira leitura é a riqueza vocabular, revelando vários domínios da cultura, um hino à língua portuguesa.

Toda a poesia de Criptopórtico na forma e no conteúdo revela um poderoso Humanismo que é preciso descobrir em cada recanto de uma inspiração alada e profunda. Tal Humanismo leva o criador literário a introduzir figuras colhidas da História, da vivência e da memória de épocas e civilizações diversas, figuras que falam a mesma língua, porque todas participam no porquê das origens do infinitamente grande ou pequeno, do significado do sofrimento, dos mistérios da Natureza e do destino do Homem. Criptopórtico é um longo poema do Homem, do Homem por dentro, sem ademanes fúteis que envolvam a cana pensante. E não deixa de sê-lo no conjunto de textos denominados “Apócrifos”.

Infere-se do que acabo de dizer a perspectiva universalista que não rejeita a meditação sobre alguns traidores ou a banalização de uma aldeia perdida no Nordeste Alentejano, nem a crítica a uma sociedade de plástico em que temos de sorrir, esperando os dias em que olhar o céu ou percorrer uma montanha serão atitudes a pagar.

A interessante busca da Verdade percorre a obra na obsessão da passagem, que parece não existir, ao fim do caminho no meio do entulho da existência, de sedes, de fomes, tumultos, sons que atordoam, interrogações sobre o binómio Mistério / Ciência, de mistura com ruínas, incêndios e cinzas, compondo um cenário apocalíptico que nos obriga a definir e a optar.

Esboroando o espaço e o tempo, numa ânsia de Eternidade, permanecem contudo os símbolos, designações de objectos concretos portadores de significados indefinidos.

 

Imagem da capa de Criptopórtico, de Ruy Ventura.

Imagem da capa de Criptopórtico, de Ruy Ventura.

 

A Árvore, um deles, aparece-nos como criação pura, sinal de beleza e liberdade em seus meneios no vento. Será Árvore da Vida, Árvore da Cruz, árvore da morte se transformada em forca.

Dela sai a Madeira, ornada de veios, matéria nobre da estatuária e de outras artes, prancha mortuária, simples caixão.

Na Nascente se esconde o segredo da origem, o jorrar da vida que serpenteia livremente sobre a terra.

A Fortaleza, que aparece e desaparece, tanto pode ser sinal de segurança como vulto de presídio.

O Sangue, que se espalha com abundância na obra, tanto é símbolo de vida como sinal de martírio ou aceno de morte.

No Poço podemos descobrir um relicário de segredos ou a reminiscência do suicídio.

A destruição completa define o incêndio como o faz também a globalidade da beleza.

As cinzas não são só restos aniquilados, mas elementos purificadores, até fertilizantes e reveladores de paz.

Mas o criador literário centra os poemas na palavra, no verbo e nas suas associações, por vezes estranhas e sempre criadoras. Dir-se-ia um semeador que lança pétalas ao vento ou dardos a um alvo mítico.

O jogo original dos signos convida para todos os domínios do indizível, como flor misteriosa que se abre no chão em todos os sentidos da tragédia e da beleza, em interpretação livre e a perder de vista. Assim, as origens, o destino do Homem, a Vida, a morte, de mistura com a Natureza, os ruídos, as sedes enrolam-se no poema como um manto caprichosamente tecido ao corpo de um bailarino.

Há uma realidade sem tempo, na qual o espaço é burilado pela força da alma, o que, além de acentuar a dimensão universal, permite aos leitores todas as veredas que levam à mina, à complexidade de ser, à sua própria interioridade. […]

Gostaria ainda de salientar o sabor bíblico que pontilha aqui e ali a obra de Ruy Ventura. Para além de excertos muito conhecidos, como não ter uma pedra onde reclinar a cabeça e Lembra-te ó Homem que és pó e em pó te hás-de tornar, aparece-nos, por exemplo, uma evocação do Velho Testamento, quando o autor escreve: se os ossos poderão voltar a erguer-se no fim da batalha. Segundo uma narrativa bíblica, alguém observa um campo devastado, coberto de cinzas e restos de ossos, lugar onde se travou um conflito sangrento e arrasador. No entanto, o mesmo observador assiste ao prodígio de ver juntarem-se os ossos formando esqueletos que se cobrem de músculos e estes de pele. E assim se levantam, vivos, todos os guerreiros que tinham perecido. Inspirado nas palavras de Cristo – Ninguém pode servir a dois senhores… Não podeis servir a Deus e ao dinheiro –, o poeta escreve: Há quem escolha (e esconda) de dois senhores o mais rendoso – e assim afunde (e se afunde) num terreno movediço todos os corpos e, com eles, a alegria, a dor e a graça.

 

Imagem da capa de Criptopórtico (pormenor): “Ao falar do entulho em que nos movemos, surge a interrogação: Haverá por ali um grão de mostarda...?”

Imagem da capa de Criptopórtico (pormenor): “Ao falar do entulho em que nos movemos, surge a interrogação: Haverá por ali um grão de mostarda…?”

 

Ao falar do entulho em que nos movemos, surge a interrogação: Haverá por ali um grão de mostarda ou outra semente cuja árvore um dia reconheceremos? É nítida a evocação da comparação de Cristo para transmitir a noção de Reino do Céu. A semente da mostarda é das mais pequenas que existem; produz não uma planta vulgar, mas um arbusto forte onde podem pousar as aves do céu.

Finalmente, seja-me permitido citar um antiquíssimo texto do Génesis para poder compará-lo à visão poética do criador literário: Deus disse: Haja um firmamento entre as águas para as manter separadas umas das outras. Deus fez o firmamento e separou as águas que estavam sob o firmamento. E assim aconteceu. Deus chamou céus ao firmamento. Assim surgiu a tarde e em seguida a manhã. Foi o segundo dia (da criação do mundo, claro). Agora o poeta: Deus quis que a neblina fosse um verbo intransitivo, que a vitória surgisse pela manhã pousando sobre o rio enquanto o fogo e o calor iam cessando e o voo colocava sobre as águas o corpo de uma criança. Era talvez o segundo dia da criação – aquele em que o cordeiro se multiplicaria no centro do bosque e da cidade. Temos, então, Deus Criador e o criador literário.

Florbela Espanca diz que ser poeta é ser maior do que os homens. / É ter cá dentro um astro que flameja… O astro é o dom concedido ao Homem, para que manuseando o verbo de maneira original e bela transmita a novidade dos seus sentimentos, da sua visão do Mundo e do ser.

Não é poeta quem quer. A Escola não faz poetas.

O astro é que flameja onde quer, como o prova a existência das décimas, também chamadas quadras de 40 pontos, criadas por analfabetos e semianalfabetos, abundantes na nossa região [Alentejo]. Esses poemas, bem como a simples quadra de redondilha maior, eram e são ainda transmitidos oralmente ou através do canto, à maneira dos rapsodos, que assim espalharam os poemas homéricos, tornando-os elemento unificador de um Povo que se dispersava em cidades-estado. O astro que flameja é um dom do Alto que impele quem o recebe a escrever, a escrever-se e a mandar a sua mensagem correr mundo.

Só que espalhar a mensagem é o mais difícil.

Ter coragem para escrever não é necessário, mas a coragem para publicar um livro é indispensável.

A sociedade portuguesa, fatalmente mecanizada como muitas outras, tem vindo a perder valores, gravitando à volta do lucro fácil, dos milhões, dos pequenos triunfos, tantas vezes falsos, elevados à categoria de ideal.

O espírito (agora substituído por ego) é secundário.

Para os grandes desaires arranjou-se um pacote de soluções que servem irrepreensivelmente, no momento exacto.

Para as grandes alegrias valem perfeitamente os banquetes, a dança, os sons ensurdecedores, os “jogos” de luz.

O espírito, assim empacotado, fica atrofiado, anémico, incapaz de desenvolver toda a sua riqueza e o País fica mais pobre.

É preciso coragem para publicar um livro de poesia.

Mas melhor é pensar que no meio do mato pode haver ainda alguma sementinha de mostarda.

 

Maria Guadalupe Transmontano Alexandre é poeta e investigadora.

 

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