![Imagem da capa de Criptopórtico, ilustração de © Mikalojus Konstantinas Ciurlionis, Sparks [III] (1906)](https://setemargens.com/wp-content/uploads/2023/04/3-CULT-Criptoportico-imagem-2-capa.png)
Imagem da capa de Criptopórtico, ilustração de © Mikalojus Konstantinas Ciurlionis, Sparks [III] (1906)
No princípio já existia o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus. Tudo começou a existir por meio d’ Ele. Assim se inicia o Prólogo do Evangelho de S. João. E mais adiante: E o Verbo fez-se Homem e habitou entre nós. Nesta referência a Jesus Cristo a palavra ganhou um significado sagrado e criador. Talvez por isso, Ruy Ventura no texto introdutório da sua obra afirma o seguinte: … abdiquei da versificação e de outros artifícios, centrando cada um dos poemas no que mais importa – as suas palavras, as suas frases, a sua sintaxe e a sua capacidade imagética, simbólica e escarificadora. Ora, o que espanta logo à primeira leitura é a riqueza vocabular, revelando vários domínios da cultura, um hino à língua portuguesa.
Toda a poesia de Criptopórtico na forma e no conteúdo revela um poderoso Humanismo que é preciso descobrir em cada recanto de uma inspiração alada e profunda. Tal Humanismo leva o criador literário a introduzir figuras colhidas da História, da vivência e da memória de épocas e civilizações diversas, figuras que falam a mesma língua, porque todas participam no porquê das origens do infinitamente grande ou pequeno, do significado do sofrimento, dos mistérios da Natureza e do destino do Homem. Criptopórtico é um longo poema do Homem, do Homem por dentro, sem ademanes fúteis que envolvam a cana pensante. E não deixa de sê-lo no conjunto de textos denominados “Apócrifos”.
Infere-se do que acabo de dizer a perspectiva universalista que não rejeita a meditação sobre alguns traidores ou a banalização de uma aldeia perdida no Nordeste Alentejano, nem a crítica a uma sociedade de plástico em que temos de sorrir, esperando os dias em que olhar o céu ou percorrer uma montanha serão atitudes a pagar.
A interessante busca da Verdade percorre a obra na obsessão da passagem, que parece não existir, ao fim do caminho no meio do entulho da existência, de sedes, de fomes, tumultos, sons que atordoam, interrogações sobre o binómio Mistério / Ciência, de mistura com ruínas, incêndios e cinzas, compondo um cenário apocalíptico que nos obriga a definir e a optar.
Esboroando o espaço e o tempo, numa ânsia de Eternidade, permanecem contudo os símbolos, designações de objectos concretos portadores de significados indefinidos.

A Árvore, um deles, aparece-nos como criação pura, sinal de beleza e liberdade em seus meneios no vento. Será Árvore da Vida, Árvore da Cruz, árvore da morte se transformada em forca.
Dela sai a Madeira, ornada de veios, matéria nobre da estatuária e de outras artes, prancha mortuária, simples caixão.
Na Nascente se esconde o segredo da origem, o jorrar da vida que serpenteia livremente sobre a terra.
A Fortaleza, que aparece e desaparece, tanto pode ser sinal de segurança como vulto de presídio.
O Sangue, que se espalha com abundância na obra, tanto é símbolo de vida como sinal de martírio ou aceno de morte.
No Poço podemos descobrir um relicário de segredos ou a reminiscência do suicídio.
A destruição completa define o incêndio como o faz também a globalidade da beleza.
As cinzas não são só restos aniquilados, mas elementos purificadores, até fertilizantes e reveladores de paz.
Mas o criador literário centra os poemas na palavra, no verbo e nas suas associações, por vezes estranhas e sempre criadoras. Dir-se-ia um semeador que lança pétalas ao vento ou dardos a um alvo mítico.
O jogo original dos signos convida para todos os domínios do indizível, como flor misteriosa que se abre no chão em todos os sentidos da tragédia e da beleza, em interpretação livre e a perder de vista. Assim, as origens, o destino do Homem, a Vida, a morte, de mistura com a Natureza, os ruídos, as sedes enrolam-se no poema como um manto caprichosamente tecido ao corpo de um bailarino.
Há uma realidade sem tempo, na qual o espaço é burilado pela força da alma, o que, além de acentuar a dimensão universal, permite aos leitores todas as veredas que levam à mina, à complexidade de ser, à sua própria interioridade. […]
Gostaria ainda de salientar o sabor bíblico que pontilha aqui e ali a obra de Ruy Ventura. Para além de excertos muito conhecidos, como não ter uma pedra onde reclinar a cabeça e Lembra-te ó Homem que és pó e em pó te hás-de tornar, aparece-nos, por exemplo, uma evocação do Velho Testamento, quando o autor escreve: se os ossos poderão voltar a erguer-se no fim da batalha. Segundo uma narrativa bíblica, alguém observa um campo devastado, coberto de cinzas e restos de ossos, lugar onde se travou um conflito sangrento e arrasador. No entanto, o mesmo observador assiste ao prodígio de ver juntarem-se os ossos formando esqueletos que se cobrem de músculos e estes de pele. E assim se levantam, vivos, todos os guerreiros que tinham perecido. Inspirado nas palavras de Cristo – Ninguém pode servir a dois senhores… Não podeis servir a Deus e ao dinheiro –, o poeta escreve: Há quem escolha (e esconda) de dois senhores o mais rendoso – e assim afunde (e se afunde) num terreno movediço todos os corpos e, com eles, a alegria, a dor e a graça.

Ao falar do entulho em que nos movemos, surge a interrogação: Haverá por ali um grão de mostarda ou outra semente cuja árvore um dia reconheceremos? É nítida a evocação da comparação de Cristo para transmitir a noção de Reino do Céu. A semente da mostarda é das mais pequenas que existem; produz não uma planta vulgar, mas um arbusto forte onde podem pousar as aves do céu.
Finalmente, seja-me permitido citar um antiquíssimo texto do Génesis para poder compará-lo à visão poética do criador literário: Deus disse: Haja um firmamento entre as águas para as manter separadas umas das outras. Deus fez o firmamento e separou as águas que estavam sob o firmamento. E assim aconteceu. Deus chamou céus ao firmamento. Assim surgiu a tarde e em seguida a manhã. Foi o segundo dia (da criação do mundo, claro). Agora o poeta: Deus quis que a neblina fosse um verbo intransitivo, que a vitória surgisse pela manhã pousando sobre o rio enquanto o fogo e o calor iam cessando e o voo colocava sobre as águas o corpo de uma criança. Era talvez o segundo dia da criação – aquele em que o cordeiro se multiplicaria no centro do bosque e da cidade. Temos, então, Deus Criador e o criador literário.
Florbela Espanca diz que ser poeta é ser maior do que os homens. / É ter cá dentro um astro que flameja… O astro é o dom concedido ao Homem, para que manuseando o verbo de maneira original e bela transmita a novidade dos seus sentimentos, da sua visão do Mundo e do ser.
Não é poeta quem quer. A Escola não faz poetas.
O astro é que flameja onde quer, como o prova a existência das décimas, também chamadas quadras de 40 pontos, criadas por analfabetos e semianalfabetos, abundantes na nossa região [Alentejo]. Esses poemas, bem como a simples quadra de redondilha maior, eram e são ainda transmitidos oralmente ou através do canto, à maneira dos rapsodos, que assim espalharam os poemas homéricos, tornando-os elemento unificador de um Povo que se dispersava em cidades-estado. O astro que flameja é um dom do Alto que impele quem o recebe a escrever, a escrever-se e a mandar a sua mensagem correr mundo.
Só que espalhar a mensagem é o mais difícil.
Ter coragem para escrever não é necessário, mas a coragem para publicar um livro é indispensável.
A sociedade portuguesa, fatalmente mecanizada como muitas outras, tem vindo a perder valores, gravitando à volta do lucro fácil, dos milhões, dos pequenos triunfos, tantas vezes falsos, elevados à categoria de ideal.
O espírito (agora substituído por ego) é secundário.
Para os grandes desaires arranjou-se um pacote de soluções que servem irrepreensivelmente, no momento exacto.
Para as grandes alegrias valem perfeitamente os banquetes, a dança, os sons ensurdecedores, os “jogos” de luz.
O espírito, assim empacotado, fica atrofiado, anémico, incapaz de desenvolver toda a sua riqueza e o País fica mais pobre.
É preciso coragem para publicar um livro de poesia.
Mas melhor é pensar que no meio do mato pode haver ainda alguma sementinha de mostarda.
Maria Guadalupe Transmontano Alexandre é poeta e investigadora.