Uma terceira Sodoma do lado israelita do Mar Morto (Reportagem, parte III)

| 9 Abr 19

(Em busca de Sodoma, por Frédéric Martel – III)

Cada ruína da suposta Sodoma tem a sua “mulher de Lot” em estátua de sal; aqui, a do lado israelita. Foto Wikimedia

 

ALGUNS MESES MAIS TARDE, voltei de novo à margem do Mar Morto; desta vez do lado israelita. E depois de ter visitado dois sítios candidatos do lado jordano, descubro uma terceira Sodoma em Israel!

O contraste entre a “Sodoma jordana” e a “Sodoma israelita” é impressionante. Do lado árabe, a estrada que nos leva lá é caótica, os rebanhos de cabras e burros em liberdade pareciam ter prioridade, os acampamentos beduínos eram anárquicos e os complexos hoteleiros, de concorrência limitada, estavam reservados a uma elite. Do lado de Ein Gedi, em Israel, o eixo Norte-Sul está impecavelmente alcatroado, com sinalização moderna. Não há casas clandestinas e os aldeamentos de veraneio oferecem dezenas de hotéis de todas as categorias, símbolos de uma madura economia de mercado. No entanto, para além das diferenças, são evidentes os mesmos símbolos: a caverna de Lot; a estátua de sal representando a mulher de Lot; e um local que poderia ser, ainda aqui, o da antiga Sodoma.

A partir da Estrada 90, ao longo do Mar Morto, na margem ocidental, há um anúncio: “Sedom Resort”. No cruzamento, seguindo a Estrada 2499, entra-se nas estradas escaldantes e cheias de brechas do sul do Mar Morto, em direcção a dois kibutzes  chamados Kikar Sodom Settlements– as colónias de Sodoma. Decidi ficar alojado próximo do Mar Morto, no Belfer’s Dead Sea Cabins, com dormida e pequeno-almoço, alojamento composto porvárias casinhas de madeirano kibutz principal, Neot Hakikar.

A verdade é que estes dois kibutzessãomoshavim. Estas comunidades agrícolas cooperativas não são reguladas segundo um modelo socialista, como o kibutztradicional, mas reúnem quintas individuais, independentes.

Cerca de uma centena de famílias vive neste enclave do Mar Morto, entre a fronteira jordana a leste, intransponível, e o deserto da Judeia e o princípio do Neguev, a ocidente.

– Não há ninguém aqui, diz Basher Schlomo, um israelita que vive no moshave desespera por causa das condições de vida e da saída dos jovens para as “novas” cidades tecnológicas do Neguev.

Sedom Resort situa-se a 400 metros abaixo do nível do mar e o calor, mesmo no inverno, é tremendo. Para além daquilo a que geralmente se chama – e aqui mais do que em qualquer outro lugar – a desertificação rural, Basher inquieta-se com a diminuição da água do Mar Morto, cujos efeitos tem presenciado no decurso dos anos.

– O Mar Morto diminuiu 30% desde que cheguei aqui, há quarenta anos. É na parte sul que essa diminuição é mais visível. O Mar Morto está verdadeiramente a morrer!

 

Os animais da Biblia no “pântano de Lot”

PENSA-SE GERALMENTE, do lado israelita, que a velha cidade de Sodoma se situa nas proximidades de Kikar Sodom Settlements. Aliás, não distante, descubro um grande pântano de água ligeiramente salgada baptizadoReservatório de Lot.É um pequeno paraíso de, aproximadamente, cinquenta hectares em que a vegetação é luxuriante e a fauna selvagem espectacular: observo gaivotas barulhentas, garças reais, andorinhas isabelinas, troncos verdes gigantes, oiço os sapos e observo até num monte muito próximo, com ar pacífico, gazelas da Arábia. Dizem-me também, mas não os vi, que há nestas paragens – porque nós estamos nas proximidades da reserva natural do deserto da Judeia – chacais dourados, cabras com cornos e cobras negras do deserto, como se todos os animais da Bíblia tivessem marcado encontro neste “pântano de Lot”.

Um pouco mais adiante, na estrada 90, vejo a “Mulher de Lot”. Tal como na margem jordana do Mar Morto, existe uma imensa coluna de sal que, segundo a lenda bíblica, seria a esposa de Lot, transformada em sal por Deus, por se ter voltado para ver a destruição de Sodoma. A escultura de rocha salina, orgulhosa das suas formas femininas, é espantosa. Uma hipótese que provoca o sorriso do arqueólogo Konstantinos Politis:

– As colunas de sal são frequentes perto do Mar Morto, tanto do lado israelita como jordano. E dos dois lados existe uma mulher de Lot. Estas esculturas naturais não remontam à Idade do Bronze, isto é, à idade de Sodoma. Teriam sido infalivelmente destruídas pelos tremores de terra. Esta história foi forçosamente inventada.

A jusante da falésia, uma tabuleta indica: “Gruta de Lot”. Visito esta grande gruta natural com Aviad, um jovem do kibutz que deixou Tel Aviv, onde era empregado de um bar nocturno e levava uma vida “dissoluta”, segundo as suas palavras, para se reabilitar numa quinta colectiva.

– Quero mudar de vida. O contacto com a terra, uma vida mais próxima da natureza foi o que vim procurar no kibutz.

Aviad não conhece muito bem a história de Lot, uma personagem que a religião judaica reprova, e eu conto-lhe o que sei, à luz dos nossos telemóveis, quando nos metemos com outros habitantes do kibutzna escuridão, em direcção ao fundo da gruta. Os cristais de sal rodeiam-nos em forma de estalactites ou estalagmites. De repente, chegamos ao fundo da gruta e um imenso poço de luz ilumina-nos.

Por que é que se tornou a “gruta de Lot”, enquanto muitas outras se formaram num nível mais abaixo do monte Sodoma, frequentemente mais profundas e com chaminés de luz mais impressionantes? Mistério.

 

No cimo do monte Sodoma

DECIDIMOS finalmente, Aviad e eu, subir ao cume do monte Sodoma, uma das mais célebres colinas, tal como Massada e Qumran, na margem ocidental do Mar Morto. Seria este “o anfiteatro das montanhas da Judeia de que fala Chateaubriand? A subida demora quase uma hora, por um caminho de areia, de sal e de pedra-pomes, como um desfiladeiro, num cenário despojado e esplêndido.

– O monte Sodoma é essencialmente composto de sal, como explica o arqueólogo grego Konstantinos Politis, em resposta a Amman.Significa que se encontra certamente abaixo do nível do antigo Mar Morto, o qual era vastíssimo há cerca de 100.000 anos e se estendia de Aqaba, no extremo sul da actual Jordânia, para norte, talvez até ao Lago de Tiberíades. Era na altura o “grande” Mar Morto, verdadeiramente vivo, pujante.

O monte Sodoma, com quase oito quilómetros de comprimento e cinco quilómetros de largura, é uma colina fabulosa de um branco intensíssimo. De longe, dir-se-ia que o cume está coberto de neve e as falésias de gelo, mas chegando lá descobre-se que o Monte Branco não passa de um cimo arredondado, fácil de escalar, constituído por frágeis e poeirentas rochas salinas que se desfazem nas mãos (devido ao cloreto de sódio bruto conhecido como “halite”). Um grupo de escuteiros israelitas, que acampam na região, puseram uma bandeira no cimo quando lá chegámos. (…)

Desembocando no deserto da Judeia, um deserto de fissuras, de fossos e de brechas – não um deserto de dunas –, a vista é espectacular a partir da margem israelita. No entanto, a altura desta Sodoma celeste é bem relativa: mesmo no cume, ainda estamos 170 metros abaixo do nível do mar.

 

(Tradução: Maria Carvalho Torres; Edição: Maria Carla Crespo e António Marujo)

No trabalho de reportagem que fez para o livro No Armário do Vaticano(ed. Sextante Editora, Sodoma, na versão original), o jornalista e investigador francês Frédéric Martel incluiu uma pesquisa sobre a busca da cidade bíblica de Sodoma. Esse trabalho acabou por não ser incluído no livro e deu origem a um capítulo que o autor promete publicar na página da Internet dedicada à obra (www.sodoma.fr). Entretanto, os direitos de publicação deste trabalho, para português, foram cedidos pelo autor ao 7MARGENS, que publica até ao próximo dia 12 esta grande reportagem. O texto anterior da série pode ser lido aqui.

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