
Embarcação dos puritanos e assinatura do Mayflower Compact, pintada por Robert W. Weir, 1843, Capitólio, EUA.
Celebram-se neste mês de novembro de 2020 quatrocentos anos da chegada do MayFlower a Nova Inglaterra.
A bordo seguiam um pequeno grupo de cristãos liderados pelo seu pastor, William Brewster. Estes puritanos, como eram então pejorativamente conhecidos, tinham, desde o reinado da rainha Isabel I, envidado esforços no sentido de aprofundar, sem sucesso, a reforma da Igreja Anglicana. Sendo profundamente influenciados pela Reforma e modelo teocrático calvinista da Genebra de João Calvino aquando do exílio levado a cabo pela rainha católica de Inglaterra Maria I, além de rejeitar a autoridade papal, os puritanos afirmavam o ensino de Lutero de que a Bíblia era a única autoridade infalível do cristão.
Sendo a religião puritana uma religião assente na Palavra de Deus, a pregação e a leitura da Bíblia eram extremamente fundamentais para a sua fé. A fim de que todos pudessem ter acesso às escrituras, colocavam forte ênfase na alfabetização e educação. Como consequência, tudo o que não constasse nas Escrituras, como as decorações nas igrejas, orações escritas, vestes sacerdotais, uso do sinal da cruz, ritualismo instituído, eram de todo rejeitados. Também toda a espécie de estrutura hierárquica na Igreja de Inglaterra começou a ser colocada em causa. No ano de 1570, Thomas Cartwright, professor da Universidade de Cambridge, ao proferir uma série de exposições sobre os primeiros capítulos do livro de Atos dos Apóstolos, pediu a abolição do episcopado e a criação de um governo na Igreja de Inglaterra assente num sistema presbiteriano.
Outros tiveram uma visão ainda mais radical. Por volta de 1580 e influenciados pelas ideias de Robert Browne (e embora isso fosse considerado ilegal), alguns separatistas da Igreja de Inglaterra deram início às primeiras igrejas congregacionais, constituídas por comunidades de fiéis autónomas e independentes, onde a congregação escolhia soberanamente os seus próprios líderes.
Alguns dos líderes separatistas, como Henry Barrowe e John Greenwood, foram perseguidos pelo então arcebispo de Cantuária, John Whitgift, e condenados à morte em 1593. Tanto no reinado de Isabel, como no de Jaime I, apesar dos esforços de muitos dos puritanos no sentido da reforma da Igreja Anglicana, acabaram quase sempre por falhar, uma vez que os soberanos, também eles constituídos como líderes máximos da Igreja, eram sempre relutantes a aceitar qualquer tipo de dissidência. A obediência de todos os seus súbditos, mesmo a regras e doutrinas instituídas oficialmente pela Igreja Anglicana, foi sempre vista como uma questão de obediência civil.
Entre 1607 e 1608, um grupo de separatistas puritanos, fugindo das perseguições, conseguiram ilegalmente chegar à Holanda, onde se estabeleceram nas cidades de Amesterdão e Leiden. Apesar da relativa liberdade de culto e não conseguindo assimilar a cultura holandesa e os meios de subsistência necessários para sobreviver, um grupo de cerca de 40 puritanos – entre os quais, John Robinson, William Brewster e William Bradford – embarcaram no MayFlower rumo a Nova Inglaterra, em setembro de 1620. Após a chegada, em novembro de 1620, estabeleceram a colónia de Plymouth.
Durante a “Grande Migração”, entre 1620 e 1642, mais de 21 mil colonos desembarcaram nos litorais da Nova Inglaterra. Muitos destes emigrantes eram de facto puritanos e moldaram as maiores colónias da região, a de Massachusetts Bay e Connecticut. Estas comunidades, com os seus valores religiosos, culturais e demográficos, distinguiram-se de todas as outras sociedades coloniais do Novo Mundo. Idealizavam uma terra “prometida”, a “Nova Jerusalém” instituída por Deus e constituída por homens e mulheres livres, tendo sempre em vista uma sociedade teocrática. Um dos grandes líderes puritanos e governador da colónia de Massachusetts Bay, John Winthrop, tinha já referido numa palestra que a sua nova comunidade seria “como uma cidade sobre uma colina, em que os olhos de todas as pessoas estão sobre nós”.
Também ali, o idealismo religioso fomentou a indústria e os empreendimentos. O trabalho era entendido como uma “chamada” ou vocação que glorificava a Deus. O puritanismo consagrou a autodisciplina, a administração da riqueza e a competência, cuja prosperidade era colocada ao serviço da comunidade. A promoção da alfabetização e educação, o crescimento das igrejas e escolas, que eram controladas localmente, fortaleceram ainda mais a vida cívica. Essas novas responsabilidades que surgiram com o exercício do poder e que adotaram novas formas participativas de governo, trouxeram-lhes novos desafios, mas sempre com o objetivo nobre de criar na terra uma sociedade piedosa.
Consensualmente, entre os historiadores considera-se que o puritanismo, como movimento, não sobreviveu em Inglaterra para além dos finais do século XVII e, na América do Norte, além da década de 1730. O seu declínio e o das igrejas congregacionais foi provocado pelo surgimento de dissidentes batistas, quacres, anglicanos, presbiterianos e outras divisões ocorridas no seio das suas congregações. Embora o seu ideal de sociedade teocrática se tivesse gorado, os seus ideais de moldar teocraticamente a sociedade norte-americana tem vindo a ressurgir ao longos dos tempos, especialmente na cultura do cristianismo conservador evangélico. Não será talvez errado dizer – a história assim o comprova – que todas as tentativas de, politicamente, implementar aqui na terra uma sociedade teocrática caíram por terra.
Vítor Rafael é investigador do Instituto de Cristianismo Contemporâneo, da Universidade Lusófona.