O aborto é homicídio, mas os bispos têm de ser próximos de quem defende a sua legalização; os Estados devem apoiar as uniões de pessoas do mesmo sexo, mas a Igreja continua a considerar o sacramento do matrimónio apenas entre um homem e uma mulher; e as vacinas têm uma “história de amizade” com a humanidade, não se entendem por isso os negacionismos. Palavras do Papa a bordo do avião que o levou da Eslováquia de regresso a Roma.

Em conversa com os jornalistas a bordo do avião que o transportou da Eslováquia para Itália, o Papa admitiu que também há negacionistas entre os cardeais. Foto © Vatican News.
O Papa Francisco diz que não compreende o cepticismo manifestado por algumas pessoas, incluindo cardeais e outros responsáveis católicos, perante as vacinas contra a covid-19, e fala de “uma história de amizade” da humanidade com as vacinas.
Em conversa com os jornalistas a bordo do avião que o transportou da Eslováquia para Itália, depois de uma viagem iniciada domingo, em Budapeste (Hungria), Francisco admitiu que a questão tenha a ver com a variedade de vacinas que existem e a rapidez com que foram aprovadas, e pela “virulência” e “incerteza”, provocadas pela pandemia, de acordo com a transcrição da conversa que pode ser lida no portal do Vaticano (em italiano).
Apesar de ter havido quem dissesse que as vacinas usavam linhas de células derivadas de fetos, o que levou alguns católicos a recusar as vacinas por razões morais, a Congregação para a Doutrina da Fé já afirmou que não existem razões éticas ou religiosas para as rejeitar.
O Papa admitiu que também há negacionistas entre os cardeais, referindo um, “coitado”, que chegou a estar hospitalizado em estado crítico. A alusão parece ter sido ao cardeal Raymond Burke, dos EUA, que defende a existência de teorias da conspiração, e que adoeceu com covid-19 em agosto, mas já recuperou.
No Vaticano, explicou o Papa, todos os residentes, funcionários e suas famílias foram já vacinados, exceto “um grupo muito pequeno” que recusou a vacina. “Estão a ver agora como os podem ajudar.”
Comunhão para políticos pró-aborto
Uma das perguntas feitas ao Papa durante a viagem teve a ver com o debate que decorre atualmente nos Estados Unidos, nomeadamente entre os bispos católicos, sobre se estes devem, ou não, recusar dar a comunhão a políticos católicos que defendam a legalização do aborto. Entre estes políticos está o Presidente Joe Biden.
Francisco disse que não conhece os detalhes do caso, mas que em geral aconselha os bispos a adotar sempre uma postura pastoral.
“Olhando para a história da Igreja, podemos ver que sempre que os bispos não agem como pastores quando enfrentam um problema, acabam por tomar posições políticas. Isto não é pastoral.”
“E o que deve fazer um pastor? Ser pastor. Não é andar por aí a condenar. Devem ser pastores ao estilo de Deus, que é com proximidade, compaixão e carinho. Um pastor que não sabe como agir ao estilo de Deus escorrega e acaba por entrar em muitas áreas que não são as do pastor”, afirmou.
Francisco disse que nunca recusou a comunhão a ninguém, mas salvaguardou que nunca tinha estado nessa posição. “Não sei se alguém se apresentou para comungar nessa situação, mas eu nunca recusei a eucaristia, desde que sou padre”, sublinhou.
Falando especificamente sobre o aborto, contudo, Francisco foi peremptório. “Aceitar o aborto é como aceitar o assassinato no dia-a-dia. Quem faz um aborto comete um homicídio. Vejam em qualquer livro de embriologia, a partir da terceira semana da gravidez, muitas vezes mesmo antes de a mãe se aperceber, estão lá os órgãos todos, bem como o ADN. É uma vida humana, ponto final. E toda a vida humana deve ser respeitada. Este princípio é muito claro.”
Apoiar uniões gay, mas matrimónio é um homem e uma mulher
Sobre outro tema de moral familiar, o Papa defendeu que os Estados devem oferecer protecção legal para as uniões entre pessoas do mesmo sexo, distinguindo-as do matrimónio católico.
“Há leis que procuram ajudar as situações de muitas pessoas, que têm uma orientação sexual diferente”, indicou Francisco, no voo de regresso a Roma, após uma viagem de quatro dias à Hungria e Eslováquia.
Segundo o Papa, é importante que os Estados tenham a possibilidade apoiar estas pessoas, “civilmente, de dar-lhes segurança de herança, saúde”.
Em várias intervenções, desde a sua eleição pontifícia em 2013, o Papa tem distinguido estas uniões homossexuais, no plano civil, do sacramento do matrimónio, reservado na Igreja Católica à união entre um homem e uma mulher.
“O matrimónio é um sacramento, a Igreja não tem poder para mudar os sacramentos como o Senhor os instituiu”, referiu. “Matrimónio é matrimónio. Isto não significa condená-los [aos homossexuais], eles são nossos irmãos e irmãs, devemos acompanhá-los. Mas o matrimónio, como sacramento, é claro”, afirmou, admitindo alguma “confusão” no debate público entre leis civis e o casamento como sacramento.
Cristãos atentos aos sofrimentos do mundo

Na missa com que concluiu a viagem de três dias à Eslováquia, o Papa pediu ainda uma fé atenta ao sofrimento do mundo. Foi a forma de sintetizar uma das ideias dos seus discursos e homilias, em que insistiu na importância do acolhimento dos mais pobres, dos sem-abrigo, de minorias marginalizadas como os ciganos ou dos refugiados.
No santuário mariano de Šaštin, a norte de Bratislava, e assinalando a festa da padroeira nacional, Nossa Senhora das Dores, o Papa afirmou, perante cerca de 60 mil pessoas: “Uma fé que não se fica pelo abstrato, mas faz-nos entrar na carne e nos torna solidários com os necessitados. Esta fé, ao estilo de Deus, humilde e silenciosamente levanta o sofrimento do mundo e irriga os sulcos da história com a salvação.” Uma fé, acrescentou, que se torna “compaixão, que se torna partilha de vida com quem está ferido, quem sofre e quem é constrangido a carregar aos ombros pesadas cruzes”.
O Santuário de Šaštin é um destino de peregrinações há vários séculos e tornou-se, durante o regime comunista na antiga Checoslováquia, um símbolo da resistência da comunidade cristã.
Deus, disse o Papa, “subverte as lógicas do mundo” e os cristãos devem ser “profetas”: “Cristãos que sabem mostrar, com a vida, a beleza do Evangelho: que são tecedores de diálogo onde as posições se tornam rígidas; que fazem resplandecer a vida fraterna na sociedade, onde muitas vezes nos dividimos e contrapomos; que difundem o bom perfume do acolhimento e da solidariedade, onde muitas vezes prevalecem os egoísmos pessoais e coletivos; que protegem e guardam a vida onde reinam lógicas de morte.”
Tensão na Hungria? Nem por isso
A visita do Papa à Hungria, que durou escassas sete horas, foi antecedida de muita especulação sobre qual seria a atitude de Francisco com o primeiro-ministro Viktor Orbán. Este já manifestou por várias vezes divergências públicas em relação às posições do Papa em temas como o acolhimento de imigrantes e refugiados, mas esse assunto não foi abordado na reunião em que estiveram juntos. Antes, falou-se de temas e valores comuns.
“Eu recebi o Presidente [János Áder] e ele veio com o primeiro-ministro [Orbán] e o vice-primeiro-ministro. Quem falou foi o Presidente. O primeiro tema foi a ecologia, e aí, chapeau aos húngaros, pela consciência ecológica que têm. Explicou como purificam os rios, coisas que eu não sabia”, contou Francisco.
“Depois perguntei sobre a média etária da população, porque estou preocupado com este inverno demográfico. Em Itália são 47 anos, em Espanha penso que é pior, há muitas aldeias vazias, ou só com idosos. Como é que se pode resolver isto? O Presidente explicou que têm leis para ajudar os casais jovens a casar e a ter filhos. Foi muito interessante”, sublinhou.
“Vi que há muitos jovens, muitas crianças. Na Eslováquia também reparei nisso. O desafio agora é encontrar empregos, para que não tenham de ir para o estrangeiro procurar”, disse Francisco.
O Papa referiu-se também ao problema do antissemitismo, do qual falou durante a sua viagem, lamentando que esteja a “ressurgir” e a tornar-se “moda”. “É uma coisa muito, muito feia.”
Referindo-se, aliás, ao actual momento da vida europeia, disse ainda que é preciso recuperar a “mística” da União Europeia e os “sonhos” dos seus fundadores.