
“À volta de cada um de nós, será assim tão difícil ou perigoso regenerar a confiança?”. Foto: Mosteiro cisterciense de Sobrado dos Monxes, na Galiza. © Paulo Bateira, cedida pelo autor
Acabei de ver um vídeo sobre a juventude como ídolo. Um público onde predominava gente que teria qualquer idade entre os 20 e os 50. E algumas excepções para lá dos 50. Falava um notável jogador de hóquei, de corte clássico do cabelo a anunciar as brancas laterais e um ar de savana em toda a cabeleira. Todos ouviam com agrado e sorriam com o bom humor do palestrante.
Retive algumas receitas bem caseiras: ama a idade que tens a cada momento, até ao fim; não invejes os jovens nem sintas horror pela aparência de quem já viveu muito em muitos anos; idolatrar a juventude é pernicioso para os jovens e desmoralizador para quem sente a passagem do tempo…
Fiquei a pensar como todas as idades são paisagens diversas da vida. Cada uma com peculiar beleza: da natureza que nos rodeia, da arte humana, das ideias e projectos empolgantes… mas sobretudo do verdadeiro encanto das manifestações de amor e amizade. Como o carinho do Bom Samaritano.
A idolatria da juventude leva os mais velhos a dizer coisas como “já não tenho idade para mais”. O referido palestrante ridiculariza esta desculpa. Eu vou tendo idade para fazer as coisas com mais experiência e conhecimento – e, portanto, com mais criatividade.
Aproveito ainda não ter lido a carta de Francisco Samaritanus bonus para exemplificar sentimentos e razões que podem nascer das referências e comentários nos meios de comunicação – como no 7MARGENS.
A mais forte reacção foi de espanto perante o que me soava a excomunhão para quem não seguisse a lei católica respeitante à eutanásia. Já manifestei, nomeadamente no 7MARGENS, que acho contra a razão estabelecer leis para situações-limite, das quais nem se pode fazer uma descrição. Os princípios cristãos são orientações e não leis, evoluem ao longo dos tempos e nem sempre para melhor. Reflectem, contudo, uma maneira de pensar a existência, mesmo se assumem a força de lei assente na submissão pouco racional à opinião de quem manda (como no tempo dos príncipes da Igreja).
Excomunhão? O grande princípio deveria formular-se assim: quem não ama “excomunga-se” de Deus. Aos pés do moribundo, os médicos, enfermeiros, família, amigos… cada um deles pode abeirar-se interesseiramente, talvez não hesitando em dar um discreto toque de mão para que o golo venha mais cedo. E à volta de cada um de nós, enquanto vive a vida de cada dia, quanta gente nos vai matando aos bocadinhos e até provocando acidentes mortais? Quantos matam com palavras destruidoras? Na verdade, quem age deste modo voluntariamente, com o objectivo de destruir o outro – essa pessoa é que se remete ao estatuto de excomungada. Bem se diz popularmente: “esse excomungado…”
Vêm-me à memória quatro situações de morte iminente: (1) Ainda jesuíta, aos 18 anos, com uma grave e bem dolorosa inflamação estomacal – tão agonizante que fiquei plenamente confiante de que Jesus Cristo viria ao meu encontro fora do trilho do purgatório. (2) Como alferes no norte de Moçambique, numa picada supostamente minada: ainda sinto a espada gélida que me atravessou. (3) Pelos 55 anos, casado e com filhos, mal me conseguia mexer: o maior sofrimento foi parecer-me que não era levado a sério (não era grave, de facto); precisava doidamente de me sentir acompanhado e amado no momento da grande despedida. (4) Aos 72 anos, uma septicemia parou-me o funcionamento dos órgãos vitais. Durante esse curto tempo, nas urgências, como que não existi. Já consciente, preparei-me para o mais provável – e o pensamento mais fortificante foi o exemplo de Jesus Cristo. Mas como “puro ser humano”, meu irmão, que aceitou até à sua morte encarnar o dinamismo tão misterioso do amor de Deus.
Pouco depois de acordar, trouxeram um rapaz em coma. A médica abanava a cabeça, confessando já nada haver a fazer. Mas não cruzou os braços – e foi maravilhoso, ao fim de umas horas, ver o rapaz abrir os olhos e mexer um bocadinho. Ofereci o meu cantinho mais aconchegado, lembrando que lhe devia ser dada precedência.
Ao rever estas mortes falhadas, sublinho um traço comum de extrema importância: nos jesuítas, sentia-me unido à mesma fé, esperança e amor de uma grande comunidade; em cenário de guerra, sentia-me membro de igual valor num grupo que se apoiava entre si; em família e no hospital, sentia a confiança de quem me acompanhava (sublinho esta palavra).
À nossa volta, as palavras não podem ser falsas: a esperança radica na união confiante entre todos – seja para melhor agarrar esta vida ou para melhor dela partir. Mas tudo se resume a sentir-se amado e sentir que a minha vida valeu a pena.
Em muitas ocasiões, não há samaritano que nos valha. Mas alguma lei poderá um dia fazer (à força?) com que todas as pessoas sejam boas e de confiança?
Nem o Papa Francisco conseguirá obrigar todas as consciências para o bem (muitos se queixam por Deus não nos ter feito assim). Mas pode, junto a outras iniciativas, proclamar a necessidade básica de confiança e apontar o dedo, sem tremer, a quem enxota e esmaga os outros, gerando mais ódio e mais crime, aumentando o luxo egoísta dos tiranos enquanto força os mais vulneráveis a pedirem esmola longe do país, com sonhos sem fundamento, com estilos de vida difíceis de receber, com hábitos de higiene, de educação, de sistemas ideológicos e religiosos geradores de problemas e conflitos.
Por que é que os “ricos países do Ocidente” não se organizam melhor para enviar aos novos “campos de concentração” pessoas capazes de “educar” (=revelar as potencialidades) esses “prisioneiros” para que possam criar, responsavelmente, a sua típica sociedade de bem-estar?
Na verdade, o bom samaritano seguiu o seu objectivo – mas investiu nas possibilidades locais, confiante na capacidade e bondade dos que podem acompanhar um ser humano na valeta.
À volta de cada um de nós, será assim tão difícil ou perigoso regenerar a confiança?
E na situação-limite, o que importa proclamar não é mais umas horas de vida, mas ajudar a manter o respeito e manifesto carinho quando alguém cola o selo para entregar a vida a Deus.
P.S. – Já cliquei na carta Samaritanus bonus.
Manuel Alte da Veiga é professor aposentado do ensino superior