Vaticano e China: relações diplomáticas são o limite, liberdade religiosa tem de ser alargada

| 23 Out 2020

China e Vaticano anunciaram a renovação, por mais dois anos, do acordo provisório assinado em Setembro de 2018. O cardeal secretário de Estado diz estar consciente de que o documento não pretendia resolver todos os problemas. Agora, há que trabalhar não só pela unidade dos católicos chineses, mas também pela sua liberdade, dizem observadores. E, já agora, das restantes minorias religiosas.

O Papa Francisco, no Vaticano, junto de um grupo de católicos chineses com a bandeira da República Popular: aproximação lenta e apertada, entre críticas. Foto: Direitos reservados.

 

Apesar do aumento das críticas, o Vaticano anunciou esta quinta-feira, 22 de outubro, a renovação, por mais dois anos, do acordo provisório com a China sobre a nomeação de bispos, encarado por observadores como uma preparação para o estabelecimento de eventuais laços diplomáticos com Pequim.

“A Santa Sé considera positiva a aplicação inicial do acordo – que é de grande valor eclesial e pastoral – graças à boa comunicação e cooperação entre as partes sobre as matérias acordadas”, lê-se numa declaração do Vaticano de 22 de Outubro, na qual se reafirma a vontade de “prosseguir um diálogo aberto e construtivo em benefício da vida da Igreja Católica e do bem do povo chinês”.

Apesar de nunca ter sido divulgado publicamente, várias fontes afirmaram, em Setembro de 2018, quando foi assinado, que o acordo seguiria de perto o modelo vietnamita: a Santa Sé pode escolher bispos de uma selecção de candidatos propostos pelo governo. Aliás, este regime é também semelhante ao que vigorou em Portugal durante o regime ditatorial do Estado Novo, até 1974, como há dois anos se explicava aqui.

Após o anúncio do acordo, o Papa Francisco reconheceu formalmente oito bispos que tinham sido nomeados pela Associação Patriótica Católica, sem a permissão do Papa, o que significa que até então, tecnicamente, estavam excomungados.

Na informação divulgada nesta quinta-feira, não há, de novo, quaisquer elementos concretos sobre os termos do acordo, que foi renovado ad experimentum por mais dois anos.

Paolo Affatato, chefe da secção da Ásia na agência Fides, das Obras Missionárias Pontifícias, disse ao Crux que o objectivo final do Vaticano é conseguir estabelecer relações diplomáticas com a China, com Taiwan como moeda de troca, uma opinião partilhada por outros observadores.

“Quando o cardeal [Angelo] Sodano, no tempo de João Paulo II, era Secretário de Estado, disse frequentemente que a Santa Sé estava pronta ‘não amanhã mas hoje’ para fechar a representação diplomática com Taiwan e transferir a nunciatura para Pequim, como era no início”, observa Affatato.

“Originalmente a nunciatura estava na China e só por causa da Revolução Cultural [na China, na década de 1960, em que as perseguições políticas e religiosas se intensificaram] foi transferida temporariamente para Taiwan”, disse, acrescentando o carácter provisório da mudança, que depois se tornou definitiva.

 

Liberdade religiosa em “troca” com Taiwan
Igreja de Cristo Redentor. Taiwan. Catolicismo. China

Igreja de Cristo Redentor em Wufeng, Hsinchu County, Taiwan. Foto © Yuriy kosygin/ Wikimedia Commons

 

O padre Bernardo Cervellera, director da agência AsiaNews, do Instituto Pontifício das Missões Estrangeiras, diz que as relações diplomáticas são também a estratégia da China. Também em declarações ao Crux, Cervellera afirma acreditar que a renovação do acordo “é apenas porque a China está muito interessada em que o Vaticano chegue a relações diplomáticas a fim de cortar os laços com Taiwan”.

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“A motivação política da China nesta relação, à qual o ministro dos Negócios Estrangeiros também é muito favorável, é continuar estas relações talvez por mais dois anos e, depois, talvez haja relações diplomáticas”, afirma. Como a Santa Sé é o único aliado diplomático de Taiwan na Europa, qualquer relação formal do Vaticano com a China isolaria Taiwan.

Para Cervellera, a posição de Taiwan pode ainda ser uma estratégia do Vaticano no sentido de promover mudanças mais visíveis em questões como a política do Partido Comunista Chinês para a liberdade religiosa.

“Se a China aceitou outro acordo para a nomeação de bispos, então nestes dois anos eles devem trabalhar para alargar a liberdade religiosa para a Igreja na China”, diz o director da AsiaNews, lembrando que isso implicaria também o reconhecimento dos bispos clandestinos como legítimos; a libertação de bispos presos; e o fim da Associação Católica Patriótica como entidade controladora da Igreja na China.

Se isso não acontecer, Cervellera pensa “que será difícil para o Vaticano romper com Taiwan, porque as relações com Taiwan são a única carta que o Vaticano tem para jogar com a China”.

 

Reconhecer o Papa como líder da Igreja

Francisco na Praça de São Pedro: pela primeira vez, um Papa é reconhecido como parte na nomeação dos bispos. Foto © Ashwin Vaswani/Unsplash

 

Aliás, num artigo que assina na AsiaNews, Cervella escreve que o governo de Pequim sabe disso e essa é a razão para a sua “insatisfação e pronunciamentos minimalistas”. E acrescenta: “Para além das considerações geopolíticas, do ponto de vista da Santa Sé, o acordo tem um enorme valor: pela primeira vez, de uma forma certamente ambígua e ‘secreta’, o pontífice é reconhecido como parte na nomeação dos bispos; o Papa Francisco chegou mesmo a reivindicar ‘a última palavra’ nessas nomeações.”

Em qualquer caso, tanto Cervellera como Affatato sublinham que, embora significativa, a tentativa de aproximação do Vaticano à China não é algo que Francisco traga de novo. Ela tem sido a abordagem consistente da Santa Sé, desde que o Partido Comunista Chinês rompeu as relações em 1949, depois de ter tomado o poder.

“Há 60 anos que o Vaticano tenta ter uma relação com a China. Durante o período de Mao” Zedong, isso não aconteceu, porque o regime se fechou totalmente. Mas a partir do momento em que lhe sucedeu Deng Xiaoping, João Paulo II e Bento XVI, e depois Francisco, tentaram todos ter uma relação com a China”, diz Cervellera.

Affatato acrescenta que foi João Paulo II quem deu o “primeiro impulso” para resolver a questão dos bispos na China, no que foi continuado por Bento XVI e por Francisco. E, do lado de lá, também houve mudanças: a China “mudou muito”, já “não é a China de Mao”.

A questão, diz, é que o acordo é “frágil” e há “enormes problemas com a liberdade religiosa na China”: “90% das coisas da vida da Igreja, não funcionam na China”. Portanto, a liberdade religiosa deveria poder aumentar.

 

“Vender” católicos e dar tudo o que se tem?
Cardeal Joseph Zen, arcebispo emérito de Hong Kong

Cardeal Joseph Zen, arcebispo emérito de Hong Kong, numa manifestação em 2014. Foto © Wai Wan Tong/Wikimedia Commons

 

Essa é a chave, também, para entender as principais críticas que têm sido feitas ao acordo, com o argumento de que qualquer tipo de acordo com o governo chinês é como vender católicos que foram perseguidos e presos pelo regime comunista, e só permitiria ao Partido Comunista apertar o seu controlo sobre as religiões em geral, em vez de dar mais espaço para respirar.

Na actual administração dos Estados Unidos, o secretário de Estado Mike Pompeo, escreveu em Setembro um artigo na revista religiosa conservadora First Things, antes de uma visita planeada ao Vaticano, exortando a Santa Sé a exercer a sua “autoridade moral”, condenando as violações da liberdade religiosa e dos direitos humanos na China.

Em resposta ao artigo, o Secretário de Estado do Vaticano, Cardeal Pietro Parolin, disse que estava “surpreendido” e que a revista não era o local certo para ter a discussão. Defendeu também a posição do Vaticano, dizendo que a renovação do acordo foi uma “decisão ponderada” e estava consciente das preocupações com a liberdade religiosa.

O cardeal chinês Joseph Zen, bispo emérito de Hong Kong e principal rosto da oposição à estratégia de aproximação, condenou várias vezes o acordo e a possibilidade da sua renovação. Num artigo recente, acusava o cardeal Parolin de “mentiroso”, questionando a sua fé e argumentando que o acordo trata mais de política do que de evangelização.

Em declarações ao Crux, nesta quinta-feira, Zen disse que a renovação do acordo era um “grande erro”, um “disparate” e um “absurdo”, lamentando que, após dois anos de vigência e apesar de ser chinês, nunca viu o texto. O documento é inútil, acrescentou, porque as autoridades chinesas “não cumprem a sua palavra”.

“Mesmo nestes dois anos, qual é o efeito que tem tido? Nada! O Vaticano não conseguiu nada”, disse o cardeal, insistindo que não houve qualquer sinal de melhoria na questão da liberdade religiosa, mas que há, pelo contrário, “ainda mais perseguição” e que a Igreja clandestina foi “destruída” enquanto o Vaticano dava “tudo o que tinha ao governo chinês”.

 

Trabalhar mais pela liberdade religiosa para todos
uigures, China, Foto_ © Xinjiang Bureau of Justice WeChat Account

Centenas de uigures, uma das minorias religiodsas que tem sido mais perseguida, detidos num campo de educação política em Xinjiang. Foto: © Xinjiang Bureau of Justice, através da Human Rights Watch.

 

Para o padre Cervellera, críticos como o cardeal Zen têm apontado “algumas coisas muito importantes” sobre a falta de liberdade religiosa na China e o historial da nação no que diz respeito aos seus acordos. Se padres e bispos forem forçados a alinharem-se com as autoridades políticas, diz, arriscam a transformar-se em “funcionários do Estado”, em vez de agentes de evangelização.

Nos próximos dois anos, acrescenta, os responsáveis católicos devem “trabalhar por uma maior liberdade religiosa para a Igreja, mas também para os muçulmanos, budistas e protestantes, que são igualmente muito perseguidos pelo regime”.

Paolo Affatato, por seu turno, diz que o acordo “tem um carácter religioso, pastoral”, e como tal “não deveria ter um peso político e geopolítico, como o governo dos EUA” pretende.

O acordo também mostra que o catolicismo “não é uma fé estritamente do Ocidente”, mas universal. E o importante, acrescenta o responsável da Fides, é a unidade e o apreço da comunidade católica chinesa, “em cujo nome ninguém pode falar a não ser eles próprios”.

No mesmo sentido foi a argumentação, na quarta-feira, do cardeal Parolin em defesa do “seu” acordo e quase antecipando a declaração oficial do dia seguinte. Numa intervenção na Universidade Antonianum, em Roma, afirmou que nunca esperou que o acordo resolvesse todos os problemas e manifestou a sua esperança de que “a Igreja na China possa redescobrir, graças a este acordo, a sua unidade e que através desta unidade se possa tornar um instrumento para difundir o evangelho na sociedade chinesa e trabalhar para ajudar a ver um desenvolvimento autêntico para todo o povo do país.”

Citado pela UCA News (agência de jornalistas católicos asiáticos), na mesma ocasião, o número dois do Vaticano disse que para já, não se está a falar de relações diplomáticas e que as necessidades pastorais dos católicos chineses são a principal preocupação do acordo, dizendo ainda esperar que “haja melhorias relativamente ao funcionamento dos termos do acordo”. E garantiu que o acordo não exige que o Vaticano se mantenha em silêncio sobre questões de direitos humanos.

O padre Bernardo Cervellera, da AsiaNews diz ainda que não haver um acordo seria “trabalhar contra um muro”, mas pensa que a Igreja deve ser mais clara em termos de evangelização: “O Vaticano deve encontrar formas, nestes dois anos, de apoiar mais a vida da Igreja”, diz. E, referindo o crescimento maciço do protestantismo na China, acrescenta que “é possível evangelizar sem relações diplomáticas”.

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