Vaticano esclarece (ou confunde?) o que o Papa (não) disse sobre uniões civis homossexuais

| 3 Nov 2020

Homofobia. Homossexualidade

Manifestação em Estrasburgo, em Janeiro de 2013: “Perante a homofobia, Jesus grita”, diz o cartaz. Foto © Claude Truong-Ngoc/Wikimedia Commons

 

A Secretaria de Estado do Vaticano enviou um comunicado aos bispos de todo o mundo sobre as declarações do Papa Francisco acerca da união civil de homossexuais, divulgadas no documentário Francesco, do realizador judeu russo Evgeny Afineevsky.

Segundo o núncio apostólico (embaixador do Vaticano) no México, Franco Coppola, citado pela ACI Prensa, os esclarecimentos foram enviados pela Secretaria de Estado da Santa Sé às nunciaturas, com o objectivo de serem difundidos “entre os bispos”.

A carta não foi divulgada oficialmente, mas o núncio no México divulgou-o na sua página na rede social Facebook.

 

“Duas perguntas em dois momentos diferentes”

De acordo com esse texto, a carta procura contextualizar o que o Papa afirmou – e que não difere muito do que passou no documentário, com a diferença de colar duas frases de respostas diferentes. Vários comentários apressaram-se a vir dizer, de novo, que Francisco não mudou a doutrina. Mas transcreva-se a carta (com as devidas correcções do português):

Algumas afirmações, contidas no documentário Francesco do guionista Evgeny Afineevsky, suscitaram, nos últimos dias, diversas reacções e interpretações. Por isso, oferecem-se alguns elementos úteis, com o desejo de favorecer uma compreensão adequada das palavras do Santo Padre.

Há mais de um ano, durante uma entrevista, o Papa Francisco respondeu a duas perguntas diferentes em dois momentos diferentes que, no referido documentário, foram editadas e publicadas como uma única resposta sem a devida contextualização, o que gerou confusão. O Santo Padre tinha feito, em primeiro lugar, uma referência pastoral à necessidade de, no seio da família, o filho ou a filha com orientação homossexual nunca serem discriminados. A eles se referem as palavras: “As pessoas homossexuais têm o direito de estar em família; são filhos de Deus, têm direito a uma família. Não se deve expulsar da família ninguém nem fazer-lhe a vida impossível por isso.”

O parágrafo seguinte da exortação apostólica pós-sinodal sobre o amor na família, Amoris Laetitia (2016) pode fazer luz sobre estas expressões: “Com os padres sinodais, tomei em consideração a situação das famílias que vivem a experiência de ter no seu seio pessoas com tendências homossexuais, uma experiência nada fácil nem para os pais nem para os seus filhos. Por isso, desejo acima de tudo reiterar que cada pessoa, independentemente da sua tendência sexual, deve ser respeitada na sua dignidade e acolhida com respeito, procurando evitar ‘qualquer sinal de discriminação injusta’, e especialmente qualquer forma de agressão e violência. No que diz respeito às famílias, trata-se por seu lado de garantir um acompanhamento respeitoso, para que aqueles que manifestam uma tendência homossexual possam contar com a ajuda necessária para compreender e realizar plenamente a vontade de Deus na sua vida” (n. 250).

Uma pergunta posterior da entrevista era, entretanto, acerca de uma lei de há dez anos na Argentina sobre os casamentos igualitários de casais do mesmo sexo e à oposição do então arcebispo de Buenos Aires. A este propósito, o Papa Francisco afirmou que “é uma incongruência falar de casamento homossexual”, acrescentando que, nesse mesmo contexto, tinha falado do direito destas pessoas a ter alguma protecção legal: “O que temos de fazer é uma lei de convivência civil; elas têm o direito de estar legalmente cobertas. Eu defendi isso.”

O Santo Padre tinha-se expressado assim durante uma entrevista de 2014: “O casamento é entre um homem e uma mulher. Os Estados laicos querem justificar as uniões civis a fim de regular diversas situações de coabitação, movidos pela exigência de regular aspectos económicos entre as pessoas, tais como a garantia de cuidados de saúde. Trata-se de pactos de convivência de natureza diferente, dos quais não saberia dar um elenco das diferentes formas. É preciso ver os diversos casos e avaliá-los na sua variedade.”

papa francisco. dominique wolton

Francisco com Dominique Wolton, autor de Um Futuro de Fé, onde também seaborda o tema das uniões civis homossexuais. Foto: Direitos reservados

“Disposições estatais e não doutrina”

O núncio no México conclui que, com este esclarecimento fica claro que o Papa quis referir-se a algumas disposições estatais e “não certamente à doutrina da Igreja, que tem sido reafirmada muitas vezes ao longo dos anos”. Também a ACI Prensa acrescenta que a carta do Vaticano “coincide com as recentes declarações sobre o assunto dos bispos argentinos Héctor Aguer e Víctor Manuel Fernández, arcebispo emérito e arcebispo titular de La Plata, respectivamente”.

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Víctor Manuel Fernández, que é apontado muitas vezes como conselheiro teológico de Francisco, terá escrito no dia 21 de Outubro, na sua página de Facebook (mas depois apagado, ainda segundo a mesma fonte): “Bergoglio sempre reconheceu que, sem lhe chamar ‘casamento’, de facto existem uniões muito próximas entre pessoas do mesmo sexo, que não implicam em si mesmas relações sexuais, mas uma aliança muito intensa e estável. Conhecem-se muito bem, partilham o mesmo tecto durante muitos anos, cuidam um do outro, sacrificam-se um pelo outro.

Na publicação, o bispo acrescentava: “Pode acontecer que prefiram que, num caso extremo ou doença, não consultar os seus familiares, mas a pessoa que conhece as suas intenções em profundidade. E pela mesma razão preferem que seja essa pessoa a herdar todos os seus bens, etc. Isto pode ser previsto por lei e é chamado ‘união civil’, ou ‘lei da união civil’, e não casamento. Bergoglio sempre teve esta opinião, e mesmo há anos atrás houve uma discussão no episcopado argentino, onde Bergoglio defendeu isto, mas perdeu. A maioria disse que isto seria confundido com casamento e preferiu não inovar.”

O bispo Héctor Aguer confirma esta versão dos factos, dizendo que a questão envolvia um “juízo moral” e por isso foi reprovada pela maioria do episcopado.

Se o Papa não quis mudar doutrina, isso parece claro, uma vez que as declarações surgiram no âmbito de uma entrevista televisiva. A própria Conferência Episcopal Portuguesa apressou-se, em comunicado, a dizer que as declarações do Papa “não afectam a doutrina da Igreja” sobre o matrimónio – de facto, Francisco não falava do tema. Mas o episcopado português sublinhava ainda que essas afirmações “revelam a atenção constante do Papa às necessidades reais da vida concreta das pessoas”.

 

Documentos anteriores e bispos portugueses contrariam

Surge no entanto também, como evidente, que as declarações de Francisco contrariam posições anteriores do magistério católico, tal como o 7MARGENS recordou na altura: em Junho de 2003, o então cardeal Joseph Ratzinger, que viria a ser o Papa Bento XVI, escrevia que a legislação que favorece as uniões homossexuais é contrária “à recta razão, porque dão à união entre duas pessoas do mesmo sexo garantias jurídicas análogas às da instituição matrimonial”.

Por isso, acrescentava, “o Estado não pode legalizar tais uniões” e perante o seu reconhecimento legal ou a equiparação legal das mesmas ao matrimónio, “é um dever opor-se-lhe de modo claro e incisivo”. O documento da Congregação para a Doutrina da Fé acrescentava que os católicos deveriam “abster-se de qualquer forma de cooperação formal na promulgação ou aplicação de leis tão gravemente injustas e, na medida do possível, abster-se também da cooperação material no plano da aplicação”, podendo reivindicar a objecção de consciência.

Já com Francisco, o Sínodo dos Bispos sobre a família, de que resultou a exortação Amoris Laetitia (“A Alegria do Amor”), de 2016, o actual Papa contava: “No decurso dos debates sobre a dignidade e a missão da família, os Padres sinodais anotaram, quanto aos projectos de equiparação ao matrimónio das uniões entre pessoas homossexuais, que não existe fundamento algum para assimilar ou estabelecer analogias, nem sequer remotas, entre as uniões homossexuais e o desígnio de Deus sobre o matrimónio e a família.”

Também os bispos portugueses, quando o país se preparava para debater a questão das uniões homossexuais, publicaram em Fevereiro de 2009 uma nota com o título “Em favor do verdadeiro casamento”, na qual também lamentava a “tentativa de desestruturar a sociedade portuguesa com a adopção de leis que” manifestam “uma concepção desfocada dos valores que se encontram na base do nosso modo de viver, entre os quais o casamento e a família”. A nota terminava afirmando a rejeição da equiparação da união entre pessoas do mesmo sexo “à família estavelmente constituída através do casamento entre um homem e uma mulher” – rejeição estendida à adopção de crianças por homossexuais.

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