Ventos, baladas e canções do matrimónio

| 10 Jun 2021

Tive que escrever um texto sobre Balada de Amor ao Vento, o primeiro romance da primeira romancista moçambicana, Paulina Chiziane. Folheando o livro, encontrei algumas anotações feitas, há algum tempo. Tenho o hábito de borrar nos meus livros, com os pensamentos que me ocorrem, no momento da leitura. Encontrei sublinhadas as frases que seguem e que são marcantes:

[…] – Saranau, nossa Saranau, tu vais partir, adeus! Já não ouviremos a voz do teu pilão. Não beberemos mais a água na concha da tua mão. Acabaram-se para nós os sorrisos, o teu cantar alegre e inocente, oh cruel destino o de uma mulher. Outras bocas beberão da tua fonte. Outros olhos irão odiar o teu sorriso, Saranau, em breve partirás para a escravatura […] – pág. 35.

[…] – Saranau, o lar é um pilão e a mulher o cereal. Como o milho serás amassada, triturada, torturada, para fazer a felicidade da família. Como o milho suporta tudo, pois esse é o preço da tua honra […] – p. 46.

Numa das minhas notas (no livro), a comentar essas frases escrevi: “que exagero”! Mas essa era a minha sensação naquele momento.  Hoje, relendo as notas, verifico que, mesmo aceitando a condição de ficcionalidade, numa obra escrita com alguma ironia, tal como Balada de Amor ao Vento, grande parte do que ali estava descrito é verificável na vida real. Pode ser que, no campo ou no interior do país (Moçambique), o fenómeno ocorra de modo mais frequente e mais acentuado, mas acontece nas cidades e a ideia geral é a de que é uma honra estar no lar (num casamento) e que se deve fazer de tudo para o aguentar com as suas vicissitudes.

O assunto sobre o casamento ainda anda à tona, nos meus círculos de debate, porque há dois meses publiquei um texto sobre a viagem de um vestido de noiva, nas sociedades moçambicanas, desde a sua compra ou costura, passando pelo dia do casamento da sua proprietária, até a sua morte.

Eu comentei o quão esse texto tinha desafiado todas as minhas crenças culturais e científicas e alguém dizia: “Poderias escrever mais sobre os casamentos. Há ainda muito o que se conversar sobre esse assunto.”

Esse comentário gerou o presente texto, que será iluminado por algumas canções populares, das cantadas em festejos de casamentos. Sim, porque nas cerimónias que antecedem o casamento, no dia do próprio acontecimento e um dia imediatamente a seguir a ele, muitas canções são entoadas, para os noivos e entre famílias, com motivos educativos e com as lembranças que os envolvidos desejam que os noivos levem para os seus futuros lares. O intuito inicial dessas canções era esse e algumas delas são carregadas de ironia e de troça. E devo frisar que os casamentos tradicionais são eventos com significado de união entre famílias e não apenas entre os que se casam.

Há canções específicas para os noivos e outras para as noivas. Outras há que os familiares dirigem uns aos outros: os pais da noiva aos pais do noivo e vice-versa. Mas tudo é feito num tom de brincadeira e de gozação. De um modo geral, as dedicadas às noivas informam o quão uma relação matrimonial é difícil, não só por questões ligadas ao casal em si, apenas, mas também por assuntos ligadas aos familiares de ambos. Dão a entender que há um lugar futuro de constante sofrimento. Para o noivo se reserva a tarefa de ser provedor do lar.

 

“Agora que te casaste…”

Passo a alguns exemplos dessas canções, na língua gitonga. Começando por duas dedicadas a noivas, das geralmente entoadas no dia do casamento:

Unani nadru uwe Joana, olo unga casari – és culpada, tu Joana, agora que te casaste.
Sinaya lugua na si vegua, dziwonele, olo unga casari – serão tecidas coisas a teu respeito, cuida-te, agora que te casaste.
Unaya vetua nawuguladi dziwonele olo unga casari – serás espancada (a dormir ou não), cuida-te, agora que te casaste. […]

 

A mensagem subjacente para a noiva é cuida-te, sê obediente e cumpridora. Para o noivo e seus familiares é de chamada de atenção para o que não deve acontecer. Segue uma outra canção:

 Unaya vadua wugara – chamar-te-ão preguiçosa
unatimisela rendre nya lipango, unatimisela rendre (2vezes) – deverás ter paciência, aquela que se requer que se tenha num lar
rendre nya lipango, una timisela rendre nyalipango, unatimisela rendre – deverás ter paciência, aquela que se requer que se tenha num lar
unaya vadua wufendre – chamar-te-ão desleixada
unatimisela rendre nya lipango, unatimisela rendre (2 vezes) – deverás ter paciência, aquela que se requer que se tenha num lar
rendre nya lipango, una timisela rendre nyalipango, unatimisela rendre – deverás ter paciência, aquela que se requer que se tenha num lar.

 

Nesta canção, a mensagem é a de que a noiva tem que ser asseada, trabalhadora, paciente e tolerante relativamente a comentários inapropriados de alguns familiares do seu marido.

Segue-se outra canção, dedicada a noivos e que a encontrei registada no livro Dzitekatekane nya Vatonga: Provérbios dos Vatonga, da autoria de Amaral Bernardo Amaral, obra na qual, para além de um historial sobre o povo Vatonga, há enigmas escritos na língua gitonga e os enigmas ou provérbios equivalentes em língua portuguesa.

Nga wonani mihimbo – vede que desgraça
Yi gunani (Fernando) – esta do Fernando,
A dzegago gyanana gi dugago – que casa uma menina
Ndrangani yta dziphumu – de família rica.
Nari saye kwetadinho – sendo ele um coitadinho (coitadinho dele)
Ana mu veja hayi? – Onde a irá pôr?
Olu a hamugago ni gibarakana – já que não tem nenhuma barraquinha
Nya gulale umo! – Para dormir!
A ban `ari nya nga mamayi waye – quanto à mãe,
A ngu vbenha ngudzu! – Fala muito [tem estado a ralhar]
Tsukwana papayi waye – menos mal que o pai
A ngu ganela vbadugwanana – Fala pouco [tem estado a falar pouco].

 

A ideia principal, nesta canção é a de que o esposo deve ser trabalhador e prover à sua família.

As amigas e primas da noiva também cantam, em nome da noiva e em despedida aos pais:

Tsalanini va mamayi, tsalanini va papayi (2x)/ nyi hongodhe wugadzini niyavadua wufendre,
Tsalanini va mamayi, tsalanini va papayi (2x)/ nyohongode gugadzini nyia vadua wugara – despeço-me mães, despeço-me pais, vou para o lar onde me chamarão de desleixada e de preguiçosa. [Na tradição africana, o pai ou a mãe de alguém e os irmãos destes têm a mesma categoria, a de pais e mães, não de tios no conceito ocidental].

 

A mensagem, nessa canção, é de despedida e de que a noiva passará para uma vida nova e que está susceptível ao inesperado. Eles demonstram que a noiva ou futura esposa está ciente de que as relações humanas, especificamente as matrimoniais, não são fáceis.

Também há cânticos dos pais do noivo, dirigidos aos pais da noiva; por exemplo:

Papayi Francisco, oh tula lidhimba yibhela hita dzeha ngadzamwani – Oh sr. Francisco, abra a porta, para que recolhamos a nossa nora
ora a wuyago ata thuledzela malipha nisilini, ethu yinamukawuka – quando ela chegar, dirá verdades e mentiras, iremos reprendê-la
ora awuyago, ata valadzela munhu ni siquiri, ethu yinamukhinyela – quando ela chegar, despejará sal e açúcar, iremos espancá-la.

 

 O significado subjacente é o de que a noiva será repreendida, em caso de necessidade.

 

Canções de ironia e gozação

“Casamento mapoche em Moçambique: ainda há quem acredite na instituição família e no matrimónio; pelo que cabe à sociedade se reeducar em nome de relações cordiais entre iguais ou entre diferentes”. Foto captada de um vídeo disponível no YouTube.

 

Estas canções contêm mensagens irónicas e de gozação. Têm fundamento em constatações de fenómenos sociais, ligados a relações humanas. Algumas eram cantadas em jeito de brincadeira, para que significassem exactamente o contrário. Nenhuma sociedade sã educa para a violência.

Entretanto, com o passar do tempo, e porque os contextos deixaram de ser explicados, as canções passaram a ser encaradas sem o seu respaldo literário. E como existem inúmeros casos de violência doméstica entre casais, essas canções passaram a ter o tom de verdadeiras. Deixaram de ser representação, para se tornarem realidade.

Temos de admitir que, de facto, para além de haver violência doméstica em alguns lares e famílias, até há algumas sociedades onde as pessoas já nem se dão conta que quando alguém comunica casos de violência doméstica entre casais, ao problema não seja dado o real peso e nem é resolvido. O assunto é encarado como se de algo normal e de bem se tratasse e, por isso deva ser suportado. Parte disso é explicado na música Ukati da cantora moçambicana Marllen (e à qual já me referi em crónica anterior)

É importante esclarecer que as cantigas acima referidas, se situam na categoria de cantigas de “maldizer”, também existentes em outras culturas. Foram criadas para educar e divertir as pessoas ou alertá-las para eventuais casos de violência, mas não para incitar a esse acto. A ironia é uma linguagem difícil de perceber e depende muito dos contextos. Na verdade, é importante que as pessoas sejam iniciadas a tal.

Cabe aos cientistas sociais ajudarem a ressignificar as canções, devolvendo-lhes o seu estatuto de canção de “maldizer”. Trabalhando, concomitantemente, para educar para o facto de que o lar e as relações matrimoniais, por vezes, se tornam lugar de confronto e que é preciso que isso seja evitado. Até porque, mesmo existindo constrangimentos, ainda há quem acredite na instituição família e no matrimónio; pelo que cabe à sociedade se reeducar em nome de relações cordiais entre iguais ou entre diferentes, sob pena de se incutir nos incautos a ideia de que canções como as que mencionei são para induzir ao sofrimento.

A ressignificação desse fenómeno ligado ao matrimónio recorda-me o lobolo, o “dote” que deve ser oferecido pelo noivo aos familiares da noiva. A sua origem remonta à troca de carinho entre os familiares dos noivos, que partilhavam uns com os outros aquilo que geralmente era fruto do seu trabalho ou o melhor que a família produzia no seu dia a dia e que tinham o prazer de trocar com a família do noivo ou da noiva no dia do casamento.

A origem do “dote”, segundo me constou em sociedades tradicionais, não era entregar a noiva à família do noivo, em troca de bens materiais e de grande valor monetário. Era, sim, o de trocar, e com significado simbólico, o que de melhor cada família produzia ao longo da vida, para celebrar novos laços e a fraternidade. Esses bens poderiam ser um produto agrícola ou pecuário. A ideia até era a de mostrar as origens de cada um. Mas hoje, esse ritual foi traduzido na entrega da noiva ao noivo e à sua família, em troca de bens com avultados valores económicos. O sentido original da tradição foi distorcido, a ponto de se acreditar que uma noiva lobolada passa a ser uma escrava na nova família, por ter sido comprada. É essa a crítica que Paulina Chiziane faz, através do seu livro, cujo excerto referi acima.

 

Esclarecer o papel do homem e da mulher

“Casamento mapoche em Moçambique: O que acontece é vermos que, em nome da liderança, os homens se tornem autoritários e arrogantes, donos e senhores de tudo e pessoas sem respeito.”. Foto captada de um vídeo disponível no YouTube.

 

Enquanto eu escrevia este texto, pude aprender, num grupo de oração de que faço parte, que a Igreja, nas homilias ou em grupos devocionais, a partir de algumas leituras, pode ajudar a esclarecer o papel social de cada pessoa na sociedade, por forma a que as relações humanas sejam mais pacíficas. A Carta aos Efésios (5:22-33) é disso esclarecedora, tal como me informaram as minhas colegas de grupo.

O papel dado ao homem é o de líder, equiparado ao papel de Cristo. E à mulher, o de colaboradora, que se submete à liderança do homem. Mas pede-se a ambos que se respeitem. O que acontece é que, em trabalho de equipa, deve sempre haver um líder e um colaborador, sem querer dizer que o líder não execute tarefa alguma; mas deve tomar as rédeas, para que os níveis de estratégia e de execução não se misturem, a ponto de a tarefa ser executada de modo errado.

O que acontece é vermos que, em nome da liderança, os homens se tornem autoritários e arrogantes, donos e senhores de tudo e pessoas sem respeito. E as mulheres não aceitam esse lugar, porque, ao lhes ser imposto o papel de colaboradoras, não lhes era imposto um lugar de escravas, tal como vemos acontecer. Cristo, sendo líder e filho de Deus, respeitou a sua Igreja. Conduziu-a com amor. E o que se pede aos crentes é que se relacionem ou que se amem uns aos outros, tal como Jesus os amou. A leitura e o entendimento que se deseja que exista, a partir de Efésios 5, não é o de existência de subalternidade entre homens e mulheres, é de mútuo apoio e de amor, como co-herdeiros de Deus, havendo, no entanto, quem ocupe o lugar de estratégia e quem ocupe o de execução. Mas se isto não for explicado, é claro que não é bem entendido, nem aplicado.

Quero, com tudo o que disse, esclarecer que as sociedades não se devem eximir dos seus papéis e das suas responsabilidades, porque, quando isso acontece, vemos as distorções que acontecem. A literatura tem a função de divertir e de educar, mas deve ser ensinada a partir dos pressupostos básicos e teóricos ligados aos significados que pretende dar; no caso deste texto, as frases que extraí da obra de Paulina Chiziane, reflectem uma crítica ao que acontece na sociedade; as canções a que me referi são cantigas de “maldizer” que, sendo irónicas, pretendem dizer exactamente o contrário. Em outros casos, as canções são apenas de gozação, para entreter os convivas. A Carta aos Efésios deve ser entendida através de pressupostos ligados à fé e ao amor de Deus. Tudo isso precisa de ser socializado. Não se nasce a saber.

 

Sara Laisse é membro do Movimento Internacional de Mulheres Cristãs – Graal e docente de Cultura Moçambicana na Universidade Politécnica. Contacto: saralaisse@yahoo.com.br.

 

Conselho de cardeais quer “contribuição das mulheres” sobre a dimensão feminina da Igreja

Dois dias de reunião com o Papa

Conselho de cardeais quer “contribuição das mulheres” sobre a dimensão feminina da Igreja novidade

O conselho dos nove cardeais reunidos esta semana com o Papa Francisco debruçou-se sobre a “dimensão feminina da Igreja” e sublinhou a necessidade de sobre este tema “ouvir, também e sobretudo, cada comunidade cristã, para que os processos de reflexão e de tomada de decisão possam beneficiar da contribuição insubstituível das mulheres”. A informação foi divulgada através de um comunicado da Sala de Imprensa da Santa Sé publicado no dia 6 de dezembro.

Apoie o 7MARGENS e desconte o seu donativo no IRS ou no IRC

Breves

 

Perto de Alenquer, está a ser preparada uma “festa inter-espiritual” de Natal

Aberta a todos

Perto de Alenquer, está a ser preparada uma “festa inter-espiritual” de Natal novidade

O Santuário e Centro de Retiros Dewachen, na Aldeia Galega da Merceana (Alenquer), vai assinalar o Natal com uma “festa inter-espiritual”. Nesta celebração, que está agendada para o dia 16 de dezembro, praticantes de várias tradições espirituais “apresentarão as suas sabedorias tradicionais e orientarão práticas meditativas que permitirão um melhor conhecimento, teórico-prático, da riqueza, singularidade e convergência” dessas mesmas tradições. Também haverá música, almoço partilhado, a apresentação de um livro e uma mostra de produtos locais.

Confrontos étnicos intensificam-se em Manipur e fazem mais 13 mortos

Comunidade cristã ameaçada

Confrontos étnicos intensificam-se em Manipur e fazem mais 13 mortos novidade

Pelo menos 13 pessoas foram mortas num tiroteio entre dois grupos armados no nordeste do estado de Manipur (Índia), assolado ao longo dos últimos sete meses por episódios de violência étnica e religiosa. O tiroteio aconteceu no início desta semana, mas desde maio que os confrontos se sucedem, tendo já feito, ao todo, mais de 180 vítimas mortais e 40 mil deslocados. A comunidade cristã tem sido particularmente visada, com mais de 350 igrejas arrasadas e sete mil casas destruídas.

A força do Verbo

A força do Verbo novidade

O texto joanino diz-nos: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada do que foi feito se fez. Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens” (Evangelho de João 1:1-4). (José Brissos-Lino)

Agenda

Fale connosco

Autores

 

Pin It on Pinterest

Share This