
“De que modo alimentamos o nosso próprio cedro do Líbano? A solidez do tronco só é possível com a seiva enriquecida pelas raízes profundas, bem assentes em terras nutritivas.” Foto © CC-BY-4.0 Vyacheslav Argenberg.
Para os tempos que vivemos, talvez um pouco de botânica e de literatura ajudem a temperar esta turbulência que nos impede de ter uma perspectiva mais tranquila sobre o mundo. Começo por uma imagem bíblica de beleza natural, a do cedro do Líbano. Esta árvore de grande porte é um sinal de longevidade e vitalidade – uma vitalidade ponderada, madura, sábia: “O justo florescerá como a palmeira, crescerá como o cedro do Líbano: plantado na casa do Senhor, florescerá nos átrios do nosso Deus.” [Salmo 91 (92)]
O cedro do Líbano (Cedrus libani), pelo qual possivelmente passámos em leituras sem lhe prestar a devida atenção, é uma conífera da zona do Mediterrâneo e Médio Oriente. Cresce a grande altitude – entre os 1000 e os 3000 metros – e por isso é também uma árvore especial pela resistência ao meio rude e agreste em que nasce. A sua folha perene, persistindo na verdura que tinge as paisagens desses bosques, e a madeira duradoura transformaram-na num símbolo de justiça e nobreza na Bíblia; adquire também significado pela altura que pode atingir, estendendo os ramos em direcção ao sol e à luz.
A área de floresta ocupada por este tipo de cedros já não se compara à da Antiguidade (fruto da exploração intensiva ao longo de séculos) mas no Líbano subsiste ainda no vale Qadisha uma pequena zona de floresta de cedros antigos, hoje classificada pela UNESCO como património mundial: a “floresta dos cedros de Deus” (Horsh Arz el-Rab). A dimensão destas árvores, com um crescimento muito lento mas repleto de solidez em cada pequeno anel que vão adicionando ao tronco, inspira-nos para a nobreza e justiça que devemos procurar dar aos nossos actos. Também nos Salmos recordamos que “As árvores do Senhor são cheias de seiva, assim como os cedros do Líbano que ele plantou.” (Salmos 103,16)
Não só a árvore é sólida e alta, como poderíamos alargar o pensamento à ideia de que com a justiça conseguimos ver melhor, mais longe e mais desimpedidos dos obstáculos imediatos. Aproveitamos uma bela descrição da subida de Saramago ao Evereste da sua infância (José Saramago, “A minha subida ao Evereste”, no livro A Bagagem do Viajante) para ilustrar esta necessidade de ascensão a um ponto mais alto, que nos permita ver de maneira mais clara e vasta:
“estou a ver, à distância de trinta e muitos anos, uma árvore gigantesca, toda projectada em altura, que parecia, na lezíria circular e lisa, a haste de um grande relógio de sol. (…) Vejo um garoto descalço rodear a árvore pela centésima vez. Ouço o bater do seu coração e sinto-lhe as palmas húmidas das mãos e um vago cheiro de seiva quente que sobe das ervas. O rapazinho levanta a cabeça e vê lá no alto o topo da árvore que se agita lentamente como se estivesse caiando o céu de azul. Os dedos do pé descalço firmam-se na casca (…) e tudo abandona o rapaz que sobe.
Dez metros, quinze metros. (…) A terra está definitivamente longe. As casas rasteiras são insignificantes, e as pessoas é como se tivessem desaparecido, e de todas apenas restasse o rapaz que sobe – precisamente porque sobe. (…)
Os braços já podem cingir o tronco, as mãos já se unem do outro lado. O topo está perto, oscilando como um pêndulo invertido. Todo o céu azul se adensa por cima da última folha. O silêncio cobre a respiração arquejante e o sussurro do vento nos ramos. (…)
Não me lembro se o rapaz chegou ao cimo da árvore. Uma névoa persistente cobre essa memória. Mas talvez seja melhor assim: não ter alcançado o pináculo então, é uma boa razão para continuar subindo…”
Como tratamos o nosso próprio cedro do Líbano, de que modo o alimentamos? A solidez do tronco só é possível com a seiva enriquecida pelas raízes profundas, bem assentes em terras nutritivas. Como a árvore de Saramago, os ramos lá no alto apontam ao céu, recebendo a luz do sol e permitindo ver mais longe, ainda que sempre de modo incompleto e a precisar de continuar a ascensão.
Trouxemos hoje uma terra que aponta para o céu como imagem que esperamos útil para um tempo que precisa de ser iluminado, amadurecido, ponderado: árvores enraizadas e firmes em solos bem cuidados, mas com horizontes amplos que não se prendem apenas com as coisas da terra – e que, ao receber depois a luz do sol, podem transformar a seiva bruta em alimento nutritivo que volta a alimentar as coisas da terra, num ciclo que se equilibra e que dá vida à própria árvore e às que a rodeiam.
João Valério é arquitecto e organista